Tempos sem boca


Helio Brauner

Tempos sem boca

“Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.” – Clarice Lispector

Naqueles dias não havia sorrisos fátuos nos rostos. Não havia lábios para se entreabrirem condescendentes e perdoarem as mães pela falta de educação dos filhos nos lotações. Nenhuma necessidade de sorrir quando aquele senhor a empurrava no corredor e se desculpava com hálito de esgoto. Para Poliana eram dias de uma torta libertação.
No trabalho, negava ao chefe a submissão sorridente de antes, para os colegas era apenas uma esfinge de olhos baços a se esconder nas tarefas da loja ou da vista de todos na solidão do refeitório, quando nem sempre continha as lágrimas. A essencialidade de estar presente era a desculpa para estar distante e, naqueles tempos sem boca, trancar-se em si mesma não era transgressão.
Mesmo aos escassos clientes com quem agora lidava, não oferecia o sorriso de mercador dos manuais porque os protocolos agora eram outros. Inevitável tratá-los bem, eram o ganha pão, mas por trás do rosto sem boca podia conter a ansiedade, enquanto olhava o relógio na parede e conferia frequentemente as mensagens no smartphone.
Um homem entrou na loja com a carnuda e exposta boca emoldurada pelo bigode e o cavanhaque, um ato de insurreição, e Poliana de imediato o advertiu à certa distância:
- Desculpe, senhor, mas é obrigatório o uso da máscara.
Ele franziu os lábios, estalou a língua, ensaiou um argumento, mas puxou do bolso o instrumento de submissão e cobriu a boca e o nariz completamente.
- Posso entrar agora? – disse sarcástico.
Poliana assentiu e, mesmo nessa hora, sua boca oculta não conseguiu erguer os lábios e expor nem um friso dos dentes com a satisfação do dever cumprido.
As horas apenas passavam, os clientes sem boca uma vez ou outra entravam e saiam da loja, nem sempre compravam aquilo pelo que todos ali se arriscaram sair de casa e, se fosse capaz, para esses haveria no rosto da jovem um esboço de ironia.
Pouco depois, uma mensagem estridente em seu smartphone e Poliana leu com sofreguidão as palavras da mãe. Por trás da máscara, finalmente, um isolado sorriso redentor. Seu pai saíra da intubação.

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Hélio Brauner

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