O Ponto-2021


Ana Helena Reis

Coberto com um pano preto, fiquei hibernado, de acordo com minhas contas, por quase 100 anos. Hoje resgatado e colocado perto da janela, avisto o lugar que, por direito, é meu.

Com certa indignação, percebo que no meu lugar colocaram uma estrutura metálica com bancos e telhadinho. Acho por bem aceitar, porque, afinal, com isso as pessoas não tomarão chuva. Por sorte, ainda dará para me localizar bem rente ao meio fio, de forma a que os passageiros possam me identificar.
Do meu posto de observação, aqui ainda emparedado, espero a chegada deles ansioso, depois de tanto tempo de distanciamento. Acho que não terei dificuldade em reconhece-los, afinal eles também ficaram registrados nessa pintura.

Os primeiros a se aproximar me deram a impressão de serem os rapazes trabalhadores do comércio. Mas que estranho – todos usam fios nos ouvidos, conectados a uma carteira de metal. Será um aparelho de surdez? Se sim, o que pode ter acontecido que todos ficaram surdos? Observando mais um pouco, talvez seja isso mesmo, pois não conversam, só mexem no aparelho, provavelmente para ajustá-lo. Estão um tanto mal trajados, provavelmente perderam o emprego e devem ter tido dificuldade para se recolocar depois da surdez. Que triste!

As crianças chegam correndo, pulando, isso não mudou nada! Mas que trajes são esses? Não se usa mais uniforme escolar? O que são essas calças azuis desbotadas, tipo rancheira para ir à escola?

Isso, porém, não é nada. Começo a ficar nervoso, pois não diviso as irmãs de hábito acompanhando as crianças e sim uma menina que parece ter quase a mesma idade deles, toda vestida de branco. Deve ser uma noviça, mas é estranho que os pais permitam que uma noviça dessa idade acompanhe seus filhos. Não é para menos que ouço elas gritarem Babá para se referir à menina, que irresponsabilidade! Onde estariam indo, se não vejo a mala de livros de couro na mão das crianças?

Logo vejo chegando o grupo de domésticas e, pelo que escuto, continuam tagarelando a respeito da vida de seus patrões. Mas já não se confraternizarem com o policial, que se sentou no banco meio isolado. Preferem conversar com a noviça, que estranho!

Andando pela fila já formada, reconheço o gazeteiro. Mas vejam só, ele agora tem uma bolsa a tiracolo e de lá distribui os periódicos impressos para quem quiser, e sem cobrar nada! Quem diria, e eu que o achava inconveniente, que gesto bonito!

Por último identifico as duas moças e seu acompanhante descendo a ladeira em direção ao ponto. Só não desabo porque estou emparedado... as moças em trajes sumários, pernas totalmente de fora, o rapaz de calças curtas e sapatos de pano com solado de borracha. Cabelos pelo ombro, desgrenhados e com alguns trançados presos com missangas, nunca vi nada tão apavorante!

O desconcerto que me causou o visual do grupo não foi nada. Fui me encolhendo de vergonha ao ver o casal se engalfinhando, se essa pode ser a palavra para tanta indecência. Agarrados, trocam beijos sem o menor pudor enquanto caminham. A cena ainda piora quando se sentam no banco, debaixo do tetinho.
Olho para a rua e para o lugar que tanto sonhei em voltar. Sinto lágrimas brotando pela pintura, apagando tudo aquilo que algum dia fez sentido para mim.

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