Ampulheta


Soraya Jordão

Chegou em meus braços contrariando todas as certezas impostas pelas limitações do meu corpo. Não tive dúvidas, era minha. Sempre fora. Apenas começamos por outros caminhos. Ao invés de sair de mim para finalmente me encontrar, me encontrou para finalmente me adentrar.
Brotou na minha vida de olhos fechados feito janela de fazenda antes do amanhecer. Enrolada numa manta branca mais parecia um pedido de trégua e paz.
Aconcheguei em meu colo com a precisão dos encaixes perfeitos. Afrouxei o cueiro e a distância de nove meses e três dias, toquei sua mão olhando seus cílios longos tão iguais aos meus. Agarrou meu dedo com a força dos que brigam pela vida. Nascemos ali.
Na infância as gracinhas, as vacinas, os primeiros passos, as noites sem dormir vigiando febre, o dever de casa, os tombos, os sustos, as manhas.
Será que é hora de contar a verdade?
─ Mãe, vem brincar comigo?
Não encontrei o tempo de dizer.
Na adolescência as espinhas, a primeira menstruação, as manias de dieta, as festas de quinze anos, o primeiro amor, o choro aconchegada em meu colo, as dúvidas profissionais, o vestibular.
Será que é hora? E se atrapalhar os estudos?
─ Mãe, essa roupa ficou boa?
Não encontrei o tempo.
Na vida adulta a semana de trote na faculdade, a carteira de motorista, o primeiro emprego, o casamento, o nascimento dos netos, os almoços de domingo, o mestrado.
Assim que estivermos sozinhas vou entrar no assunto. Será que é hora?
─ Mãe pode ficar com as crianças?
Melhor não. Ela pode não reagir bem. Acabou de passar por um divórcio, não vou dar mais um sofrimento.
A vida vai passando feito nuvens brancas no céu. Chego no agora, momento em que cato as minhas horas no palheiro. São poucas, tenho certeza. O ar pesa igual a ferro nos pulmões. O tempo goteja o que me resta.
A verdade é um parto à fórceps. Talho as palavras na tábua dos minutos:
“Filha, eu preciso te contar...”
— Mãe — agarra meu dedo com a força do nosso primeiro encontro. Descansa. Não fala nada. Eu sei que você me ama.
Sinto na testa o beijo da nossa eternidade.


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