Mistérios do cotidiano


Soraya Jordão

A porta se abre. Ela entra apressada na mira do assento mais próximo. Perto de conseguir sentar, repara numa senhora baixinha, bem enrugada e de cabelos brancos. Oferece sua quase conquista, mas a senhorinha prefere manter-se de pé. Joga seu corpo no assento. Novamente, oferece ajuda, dessa vez, para segurar a bolsa de papel que parece prestes a arrebentar de tantas coisas enfiadas dentro. A senhorinha recusa.
Ao mesmo tempo em que se ajeita no banco, pega um livro pequeno, amassado e com orelhas. Abre na folha marcada, fixa o olhar e submerge naquelas linhas. Estática na sua leitura, parece mais uma moldura naquele vagão de histórias cotidianas.
Na sua diagonal esquerda, ao lado da senhora da bolsa de papel, em pé, um rapaz alto, magro e pálido, de calça de tecido, blusa de manga longa , hermeticamente fechada nos punhos e no pescoço, com um bolso do lado direito do peito, olha fixamente para a menina do livro. Ele também seria mais uma moldura não fosse o suor que brota em sua testa, escorre pelo seu nariz e pelo seu queixo, até cair. A camisa molhada, ali onde deveriam estar apenas as axilas , expõe o calor que só ele sente no vagão refrigerado. O, homem empalidecido, observa sem piscar a menina do livro. Não, ele não olha para seu colo, suas coxas ou seus seios. Ele olha na direção dos olhos dela, parece aguardar qualquer olhar de soslaio que ela possa lhe dirigir. Pessoas empurram para abrir passagem. As portas se abrem e se fecham. Usuários entram e saem do vagão. Somente eles parecem ignorar o movimento da vida. Ela, cabeça baixa, lendo seu livro sem nenhum movimento a mais que esse. Não levanta os olhos para espairecer, não encosta a cabeça para descansar, não busca saber em que estação está , não se interessa por nada além daquele livro amassado. Em todo final de página, leva seu indicador a boca, molha na língua, esfrega o indicador no polegar, vira a folha e segue sem tirar o olhar do livro.
Ele fixado nos olhos dela. Só sai do lugar, alguns milímetros, quando o empurram, mesmo assim sem perder o alvo. Não se mexe nem para secar seu intenso suor. Cada vez que ela leva o indicador à boca, ele projeta seu rosto para frente e mexe os lábios como se fosse pedir algo. Ela não olha, ele se cala.
A voz estridente anuncia a próxima estação. Ela fecha o livro, joga na bolsa ecológica que não tem fecho nem botão, pega um crachá e se levanta. Ele se afasta para que ela passe, fixado em seu rosto. Ela não encontra os olhos dele, apenas segue seu caminho. Ele permanece ali estático. A porta começa a fechar, ele gira o corpo e com passos largos sai do vagão.
Pelo vidro ainda se vê a sacola ecológica encardida com a frase "Sou só ouvidos”. Alguns passos atrás, uma camisa branca de manga longa encharcada de suor nas costas segue apressada na mesma direção.

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