Runaway Train


Aline Peterson

O cheiro do sangue ainda estava gravado nos meus sentidos. Aquelas imagens ainda traziam o frenesi dos sustos causados pelo barulho das bombas: jovens, pequenas crianças correndo pela própria vida e pela vida de cada um dos outros meninos aos quais se impunha a intrepidez de um homem. Como se o frio e a fome não fossem suficientes, também havia o medo, e ele estava presente o tempo todo. O medo de não haver vida pra viver longe daquele inferno. O que restaria de nós caso sobrevivêssemos? Essas imagens de morte e sofrimento se apagariam com o tempo? A dor da saudade cessaria e daria lugar a algum tipo de sentimento de compensação? Quando aquela guerra chegou ao fim, recebemos como prêmio um buraco vazio que chamávamos de vida e que deveria ser preenchido com alguma coisa.
A atmosfera de entusiasmo da Belle Époque era incompatível com as consequências do final da guerra. O próprio conceito da existência humana não fazia mais sentido. Mesmo o entusiasmo juvenil de alguns por glórias militares se resumiriam a nada quando confrontados pela realidade da guerra. De que adiantaria pensar em um futuro se quando menos esperássemos poderíamos ser atirados contra nosso próprio poder de arbítrio em algum campo de guerra tendo como companhia a lama, os ratos e a carne mutilada, para que lutássemos por algo que para muitos nunca fizera falta ou sentido: uma megalomania que para nós era simplesmente vazia. Como seria a vida dali pra frente? Haveria possibilidade de vida após a guerra? Ou será que a guerra é apenas mais um sinônimo de morte não importava de qual lado do combate você está?
Além de toda a questão existencialista sobre a qual a guerra nos obriga a pensar, as questões pessoais sempre voltavam ao meu pensamento, mesmo tantos anos depois. Cada um que estivera nas trincheiras ou muito próximo delas tivera sua história arrancada de suas mãos. Em poucos anos, mas muita miséria em todos os sentidos, foram levadas possibilidades e sonhos, descartados para um bem maior, para o qual não dávamos a mínima. Dentro da minha cabeça, a volta para a casa parecia durar mais que a própria guerra, a odisseia de Ulisses. Penso que minha volta da guerra nunca terá fim, pois o tempo é um senhor malvado e a sensação de poder de escolha é apenas ilusória.
Me pergunto se, quando o dia de minha morte chegar, eu serei um homem que sobreviveu à luta inútil, guardando suas memórias de terror dentro de uma caixa no canto escuro de um quarto, ou se, ao enfrentar a morte mais uma vez, serei o menino que a trapaceou inúmeras vezes naqueles campos de guerra.

deixe um recado | voltar

E-mail:

Pageviews desde agosto de 2020:

Site desenvolvido pela Plataforma Online de Formação de Escritores