Bruxaria no Caminho




Nós já estávamos caminhando há sete horas, quase vinte e cinco quilômetros em terreno difícil e eu estava exausta, suja de lama e molhada. A chuva nos pegou na trilha no meio da mata fechada, na subida íngreme até Villafranca del Bierzo. Eu estava meio receosa, não queria voltar aquele lugar. Ali vivia Jesus Rato, o bruxo. Em boca miúda, se escutava entre os peregrinos as histórias estranhas sobre ele e seus poderes mágicos, coisas que estavam muito além da minha limitada compressão, mas das quais havia participado na minha primeira aventura no Caminho de Santiago. No último albergue onde paramos, durante a noite, só se falava em Jesus Rato e os rumores percorriam o alojamento.
- Acho que não quero parar em Villafranca, não sou muito chegado à bruxaria.
- Que bobagem, Marcelo, vamos embora, não dá para pular partes do Caminho.
- Vá você então. Um amigo me contou que aquele homem tem poderes tipo telepatia, faz coisas se movimentarem na nossa frente, dá vida a objetos, entra em transe. Isso não é coisa de Deus! Afinal, estamos num Caminho sagrado. Por lá, eu não passo.
- Tudo bem. Amanhã cedo eu e Celinha pegamos as mochilas e subimos para Villafranca, e você, Marcelo, vai de carona com um dos peregrinos de bicicleta direto para o Cebreiro. Nos encontramos lá em dois dias.
Devíamos ter feito o mesmo, mas nosso pequeno grupo foi direto para a toca do leão, quer dizer, do bruxo. Chegamos ao entardecer. O albergue era enorme, uma construção branca com grandes janelas e portas. Ficava no topo de uma encosta cercada de uma mata fechada e muito verde por causa da chuva torrencial dos últimos dias. Da porta da cozinha, se vislumbrava, de um lado, parte da trilha que percorremos, do outro, se via o pico da montanha e o íngreme caminho que enfrentaríamos no dia seguinte. Uma névoa cobria toda a paisagem e subia um cheiro de mato e terra molhada.
As mochilas ficaram na entrada e em poucos minutos estávamos na grande mesa de jantar. Eu já estava acostumada com a festa dos peregrinos ao chegar em cada albergue. A comida era sempre farta, assim como o vinho. Depois de um dia caminhando as pessoas chegavam com vontade de comer, beber e conversar. Davam um jeito de se entender em várias línguas. Eu, sinceramente, sempre suja, esfolada e maltratada, preferia ir direto para os alojamentos e descansar. Mas, o que fazer? Não tinha essa prerrogativa. Participava da euforia calada.
Logo depois do jantar, enquanto todos conversavam animados, um silêncio mortal baixou naquele lugar e todos os olhares se dirigiram para a porta da cozinha. Entrava Jesus Árias Rato. Mesmo para os que não o conheciam pessoalmente, sua figura era bastante conhecida. O que chamava mais atenção era sua altura, devia ter quase dois metros. No mais, parecia um camponês comum do norte da Espanha, com a pele queimada e enrugada pelo sol, cheirando a ovelhas e galinhas. Mas sua personalidade era magnética, até para mim que não sou muito sensível a essas coisas. Era impressionante o poder que ele exercia em todos. Aos poucos, a conversa foi retomando e Jesus Rato veio direto para o nosso lado e começou a conversar com as pessoas do nosso grupo. Embaixo da mesa, eu tentava me espichar para escutar o que falavam. estava preocupada com minha dona, não queria que ela acabasse enredada nos poderes do bruxo, que eu conhecia tão bem. Mas não houve jeito, em certo momento ele se dirigiu a ela.
- Hola Señorita, usted tiene las rodillas mui hinchadas, que tal uma massaje? Tengo uma hierbas mui poderosas!
“Não, por favor Binha, não vai cair na conversa desse bruxo.” Eu sabia que ela estava com o joelho inflamado desde Pamplona, e a culpa não era minha, seus pés não tinham nem uma bolha. Minha dona o olhava com cara de paisagem.
- Muchas veces, cuando sentimos uma dolor profunda nel corazon nuestras rodillas sufrem tambien. Pero, non te olvides que el verdadero comienzo de tu peregrinación es la puerta de tu casa, en el momento em que la transpone para iniciar el Camino de Santiago. Tu alma ya tomó la decision, toca a usted seguir la o no.”
“Ele está te enrolando! Levanta agora dessa cadeira.” Eu já começava a me desesperar mas infelizmente, não me foi dado o poder da fala. A voz dele era baixa e monótona. Já estava acontecendo! Binha tinha os olhos parados e não respondia. Ela estava hipnotizada e ninguém em volta havia notado.
Não se passaram cinco minutos e ele nos levou para uma sala ao lado da entrada e pediu para Binha tirar o casaco e a bota. Fui colocada numa sapateira enorme perto da porta, junto com outras dezenas de botas sujas e com cheiro de queijo estragado, grudando seu couro coberto de lama em mim, insuportável. Triste sina a minha. Ele havia me dado os cinco sentidos, e o poder do entendimento, mas eu não podia falar ou me mover. Por que ele não me fez o serviço completo? Por que não me aposentaram depois da primeira viagem? Por que tive que ser emprestada para outra peregrina? Botas são muito pessoais, não deviam ser emprestadas para ninguém!
Depois de muito tempo, Jesus Rato saiu da sala. Eu estava ansiosa para ver como Binha estava. Não duvidaria se ela saísse ainda hipnotizada, ou pior. Será que se lembraria de mim? Esperei durante intermináveis minutos, depois horas, mas ela não saiu! Só na manhã seguinte as outras pessoas do grupo sentiram falta dela, não a haviam visto no alojamento, procuraram em todos os lugares. Sua mochila tinha sumido também, e chegaram à conclusão que Binha tinha saído mais cedo para a próxima trilha. Mas eu estava ali, ainda naquela sapateira, e ninguém reparou. “São Tiago, tem misericórdia da minha dona e de mim!”
Depois do reforçado café da manhã, todos se prepararam para enfrentar mais um trecho do Caminho. Com as mochilas nas costas calçaram as botas e partiram. Eles estavam nos abandonando. O albergue ficou vazio a espera da próxima turma que deveria chegar ao entardecer. Vazio, não exatamente, porque Jesus Rato vagava por ali com ar sinistro e o vi tirar alguma coisa de dentro do armário da sala. “Será a mochila da Binha?”
Mas se ele a transformou num pássaro ou se a transportou para outra dimensão, eu nunca iria saber. Fiquei sozinha na sapateira com uns chinelos velhos e retorcidos, todas as minhas companheiras já haviam sido resgatadas pelos donos. O bruxo também não havia me dado o poder de chorar, tive que engolir algumas amargas lágrimas cano abaixo. Só me restava esperar os próximos pés.

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Rachel Baccarini

E-mail: rachelbaccarini@hotmail.com

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