O casarão de Santa Tereza


Rachel Baccarini

O movimento de pessoas voltando do trabalho era grande no bairro mais tradicional de Belo Horizonte às cinco horas da tarde. O senhor meio calvo, com longas costeletas brancas, distinto e sorridente, sentado na cadeira de balanço no alpendre do grande casarão de paredes descascadas, chamava a atenção dos transeuntes. Àquela hora do dia ele estava vestido de terno e gravata, bem barbeado e com os óculos pesados de armação de tartaruga. Algumas vezes lendo um jornal, outras fumando charuto e soltando a fumaça pela boca, fazendo círculos no ar. Poderia se passar por um funcionário público aposentado, quem sabe um político, quem sabe um professor de matemática.
Aquele homem parecia, literalmente, ter raízes naquele lugar, ele se confundia com o movimento dos Simca Chambord e Ford Maverick nas ruas, com os limpadores de sapato na esquina da Rua Salinas com a Av. do Contorno, com o cheiro de pastel das lanchonetes na praça Duque de Caxias.
Ele era conhecido como um benfeitor, uma pessoa muito metódica, mas gentil e civilizada. Levava cigarros e sopa para dois mendigos que dormiam no banco da praça, afagava as cabeças das criancinhas na padaria e deixava notas novinhas de mil cruzeiros no chapéu passado de mão em mão na missa das nove aos domingos.
Ele poderia ser tudo isso. Mas para mim, ele era só meu avô e eu o conhecia muito bem.
Quando eu nasci, meus pais moravam naquele casarão e ficamos lá até minha irmã mais nova nascer e eu completar seis anos. Eles diziam que meu pai não tinha ainda condições de sustentar sua família. Além disso, a casa era enorme e tinha até um porão onde costumávamos brincar.
Meu avô sempre foi um homem sedutor, sabia manipular as pessoas, principalmente minha avó. Ele fazia sempre o que queria e deixava ela ter a impressão de que mandava nele e na casa. Quando chegava mais tarde sempre entrava com um ar de cansado e muitas vezes com flores nas mãos sem nenhuma razão especial. Deixava minha avó dar as ordens e falar mais alto, enquanto ele falava baixinho e obedecia, como se fosse criança como nós. Às sextas feiras, entrava em casa de volta do trabalho com os bolsos da calça larga de linho cheios de balas e nos deixava meter as mãos para sacar aquele tesouro, soltando gritinhos de satisfação. Recebia os amigos como se fossem os únicos e aos empregados da casa como se fossem eles os donos. Acabava conseguindo qualquer coisa que queria. Lembranças difíceis de esquecer. Mas eu gostaria mesmo era de esquecer aquele homem que eu comecei a conhecer de verdade quando eu tinha cinco anos.
Já era quase noite, eu e meus irmãos estávamos no quarto, mas eu vi minha avó levantar-se para atender a porta quando alguém tocou a campainha. Ela largou o tricô, prendeu os cabelos meio grisalhos como sempre fazia e levantou-se puxando o xale sobre os ombros. Uma mulher bem mais jovem, com um vestido azul destacando uma barriga saliente, estava à porta e sorriu para ela. Aos meus cinco anos, eu percebi que não era um sorriso bom. Ela ria da minha avó, não para ela. As duas conversaram baixinho por um tempo longo demais para mim, até que minha avó começou a falar mais alto, palavras que eu só fui entender muitos anos depois. Ela bateu a porta na cara da mulher bonita e voltou em silêncio para o tricô, que ficou jogado no seu colo enquanto ela abaixava a cabeça com as mãos no rosto.
Dali em diante, o clima no casarão ficou diferente. Meu avô continuava chegando com flores, que iam direto para o lixo. Os bolsos cheios de balas foram ficando cada vez mais raros, ele estava triste e parecia ter esquecido de nós. Os olhos da minha avó estavam sempre inchados e pareciam olhar para um lugar que não existia.
O tempo passava para mim que tinha cinco anos e vivia agora com aqueles adultos atormentados, sem tempo e sem paciência para meu irmão e eu. Os olhos da minha avó foram ficando cada vez mais opacos e distantes, primeiro ela perdeu a fome, não sentava mais conosco na mesa. Quando cozinhava, esquecia as panelas no fogão, deixou de lado o tricô, e ficava longas horas trancada no quarto. O médico da família disse que ela estava deprimida, deixou uma receita longa e um monte de orientações para minha mãe, mas não conseguiu trazer de volta a avó que nós conhecíamos. Ela foi piorando rapidamente, não reconhecia mais minha mãe e nós fomos proibidos de entrar no quarto. Mas espiávamos de vez em quando pela porta e ela estava sempre na cama, muitas vezes chorando. A mesa de cabeceira vivia cheia de caixas e vidros de remédios. Para nós era um mistério o que acontecia naquele casarão que sempre fora cheio de vida, de brincadeiras e de balas.
Naquele ano, minha irmã mais nova nasceu e já estava próximo de eu completar seis anos. Meus pais já faziam planos de mudar para a casa nova, minha avó havia esquecido meu nome e não se lembrava mais da minha mãe. “Isso costuma acontecer quando as pessoas ficam mais velhinhas, meninos”, ela nos dizia, sem muita convicção.
Faltava um dia para o meu aniversário e só o que eu tinha na cabeça era a festa e o bolo de chocolate. De tanta excitação, não consegui dormir aquela noite. O casarão já estava no escuro e em silêncio, quando me levantei da cama tentando não acordar ninguém. Caminhei para a cozinha, esperando ver algum docinho, ou quem sabe o bolo em cima da mesa. O quarto dos meus avós ficava entre o nosso e a cozinha. Quando passei por ele, minha curiosidade me obrigou a dar uma espiada pela porta que estava entreaberta. A luz do abajur estava acessa e eu pude ver meu avô em pé ao lado da cama esvaziar um vidro cheio de remédios e dá-los um a um para minha avó que os engolia, obediente, de olhos fechados. Me lembro de ter pensado que minha avó devia estar muito doente mesmo, para precisar de tanto remédio.
No dia seguinte, eu não conseguia entender quando eu soube que minha avó havia morrido durante a noite. “Ela morreu dormindo, como um anjo”, disse minha mãe, com os olhos cheios de lágrimas. Alguma coisa me dizia que eu devia ficar calada e não contar nada sobre o que eu havia visto. Além do mais, eu não devia estar acordada aquela hora da noite, andando pela casa. Fiquei calada, não tive festa de aniversário, e até hoje estou calada.
Nós nos mudamos do casarão mais rápido do que estava previsto. Meu avô morreu um ano depois, não resistiu a um ataque cardíaco, morreu sozinho, num quarto de hospital. O tempo passou de novo para mim, e depois de entender tudo que aconteceu, achei que não valia a pena contar nada para minha mãe.
Alguns anos depois da morte do meu avô, meus pais venderam o casarão. Não foi difícil vender aquele casarão. Com o dinheiro nos mudamos outra vez, para um bairro novo de BH, aos pés da Serra do Curral, novos ares e novos vizinhos.
De vez em quando vou a Santa Tereza e sempre passo em frente ao casarão, que já mudou de cor três vezes. Tomo um café na padaria e converso com as pessoas que vivem no bairro hoje. Recentemente, soube através delas que as pessoas não param no casarão. Compram o imóvel e vendem ou alugam em seguida. Muitos dizem que o casarão é assombrado, à noite, se escutam barulhos estranhos no porão, e no quarto onde meus avós dormiam. “É uma dor de cabeça para os corretores de imóvel!”, me disse a dona da padaria. Eu continuo calada. Talvez um dia, quando escrever um livro, eu conte essa história.

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Rachel Baccarini

E-mail: rachelbaccarini@hotmail.com

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