O louco do Juquery


Rachel Baccarini



Uma homenagem a Lygia Fagundes Telles, a dama da literatura brasileira que nos
deixou em abril desse ano de 2022.


O grande portão de ferro do Complexo de edifícios do século XIX se abriu, o Opala preto zero quilometro entrou devagar e parou em frente a um dos prédios, o Hospital Psiquiátrico do Juquery. Mancuso pegou sua maleta de médico no banco de trás do carro e caminhou até a porta de entrada, com a roupa toda branca de médico. Era a primeira vez que ele entrava naquele lugar “de arrepiar os cabelos”, como dizia seu pai. Não sabia ao certo o que o fez sair do seu confortável consultório em São Paulo e ir até Franco da Rocha, mais de uma hora dirigindo. Talvez pura curiosidade científica ou talvez um sentimento de culpa que aparecia de vez em quando e que o forçou a aceitar o convite de Adelaide.
Ele chegou na recepção e perguntou pela dra. Adelaide. Ao entrar no consultório dela, percebeu os móveis antigos, de madeira maciça escura, com cantoneiras de metal dourado e o tapete felpudo azul escuro. Um sofá mais moderno e uma cadeira anos 60 completavam a decoração. Dois minutos depois, ela surgiu na porta.
— Olá querido! Que bom que você aceitou meu convite. Que saudade!
Enquanto ela falava os dois se cumprimentaram com dois beijinhos, ambos parecendo um pouco sem graça.
— Pois é. Eu fiquei curioso.
— Depois do fora que você me deu, imagino que ficou com um pouquinho de culpa também. Mas você deve estar muito bem, mais lindo do que nunca, mesmo perfume que eu adoro.
Adelaide passou quase encostando seu rosto no dele, pegou uma pasta preta grossa que estava sobre a mesa e se sentou ao seu lado no sofá, sorrindo irônica.
— Ainda em lua de mel? Como vai ela?
— Estamos ótimos, Adelaide. Raquel mandou um beijo para você. Mas não foi para isso que eu vim, certo? Você disse que tem uma proposta de pesquisa...
— Beijo? Ahahaah... duvido! Ela riu, exagerada, jogando a cabeça para trás. Ficou séria de repente, acendeu um cigarro e soltou a fumaça na cara dele. Sabia que ele detestava cigarro.
— Mas, vamos lá, querido! Sua ajuda vai ser muito importante. E é claro, vai ter seu nome junto ao meu e vamos publicar nas principais revistas médicas do país. Vamos focar nos casos mais graves de esquizofrenia e outras psicoses de ex-funcionários para entender como as pessoas que trabalham nesse lugar acabam enlouquecendo.
Depois de discorrer alguns minutos sobre a pesquisa, ela se virou para ele ansiosa, esperando por uma resposta.
— De princípio parece muito bom! Estou bastante interessado, pode contar com minha ajuda!
— Que ótimo! Seria bom darmos uma volta no hospital hoje. Quero te mostrar as alas e alguns pacientes. Se você não tiver que voltar correndo para sua mulherzinha...
Mais uma vez, ele fingiu que não percebeu o tom de ironia.
— Tirei o dia inteiro para vir conversar com você, Adelaide, mas as vezes eu penso que você não conseguiu superar o término do nosso namoro. Eu gostava de você, mas não deu certo!
— Namoro não, nós estávamos noivos, esqueceu? Você foi o amor da minha vida.
— Não vamos começar por esse caminho, por favor. Estou doido para conhecer o hospital e ver os pacientes.
— Doido mesmo?
Ela mordeu o lábio inferior e sorriu discretamente enquanto falava, os dois se levantaram e saíram do consultório. Passaram primeiro por uma ala à direita do grande edifício. Os dois caminhavam lado a lado, Adelaide falava sobre os diferentes casos psiquiátricos e ele ia calado.
— Essa ala é dos presos políticos. São muitos, alguns foram colegas nossos na faculdade. Eles chegam aqui gritando, revoltados e torturados. Com os choques repetidos vão ficando meio abobados e deixam de reclamar da ditadura, da vida e da comida do hospital. Passam a comer qualquer coisa, até ratos. Nunca mais voltam para suas famílias.
Mancuso olhava para os rostos dos pacientes tentando identificar algum conhecido.
— Daquele lado de lá ficam os que incomodam muito a família ou a sociedade, deficientes, velhos e outros desafortunados.
Os pacientes da ala masculina, alguns vestidos com calça azul e blusa de algodão cru, outros só de roupa íntima e alguns nus, caminhavam aleatoriamente pela ala superlotada. Parecia que o manicômio estava com o dobro da lotação.
Quebrando o silêncio momentâneo entre eles, Adelaide de repente muda de assunto.
— Há quanto tempo você me traia com ela?
— Adelaide, por favor, não quero conversar sobre isso, ainda mais aqui dentro do Juquery. Você precisa seguir em frente com sua vida.
— Difícil seguir em frente, eu te amo ainda, querido, vou te amar sempre. Vamos marcar então um último encontro na minha casa, só para conversarmos? — Ela aproximou seu corpo do dele e encostou sua cabeça no seu ombro; ele recuou rapidamente.
— Não posso me encontrar com você, eu e Raquel estamos indo para a Itália, vamos conhecer a Toscana.
— Toscana? — Ela virou subitamente para ele, com os olhos arregalados — Era onde nós tínhamos planejado ir! Você chegou a fazer um curso de vinhos, lembra? E agora você vai com ela, isso é que é ironia.
— Esse caso com a Raquel... eu não planejei nada, Adelaide, aconteceu de repente, me apaixonei. Eu e você, nós não seríamos felizes juntos, somos muito diferentes.
— Eu seria feliz com você, querido, só com você. Mas você tem razão, a vida da gente pode mudar muito de repente.
Ela contraiu a boca num sorriso cínico, novamente mordendo o lábio inferior com força, e virando o rosto para o lado contrário.
Mancuso não percebeu. Também não viu como ela apertava a pasta preta que ainda estava na sua mão direita, quase cravando as unhas no papel. Até que chegaram na ala dos ex-funcionários do hospital
— Essa é a ala que nos interessa. Todos chegaram aqui bem, passaram por um processo seletivo, consulta médica e entrevista com psicólogos. Pareciam pessoas normais, com suas famílias normais e contas para pagar. Depois de poucos anos trabalhando, vários começaram a desenvolver um quadro psicótico grave.
Os dois entraram em um dos dormitórios com várias camas muito juntas cheias de trapos. Os pacientes pareciam em maior número do que as camas. Um deles estava com uma gilete pequena, retirada de um aparelho de barbear, e cortava suas unhas com cuidado, indiferente ao filete de sangue escorrendo do dedo.
— Como vê, cada um tem suas manias. Mas aqui não estão os casos mais interessantes. Quero te mostrar um paciente. O nome dele é Barcelos. Ele era médico, trabalhou conosco durante cinco anos. Até se parece com você, querido. É alto e tem esse porte atlético que eu gosto tanto, esse corpo que eu sinto tanta falta...
Ela se apoiou no braço dele de novo e falou sussurrando no ouvido, cheirando o pescoço de Mancuso que se afastou mais uma vez. Naquela hora, ele percebeu alguma coisa diferente no olhar de Adelaide, mas em segundos ela voltou a ser a doutora que conhecia todos os mistérios do Juquery.
— Agora ele precisa ficar em isolamento na rotunda porque atacou outro paciente a dois meses atrás. Não tem família em São Paulo, nenhum amigo vem visitar depois que enlouqueceu. Ele grita quase o dia todo pedindo para o soltarmos, continua muito agressivo e fala coisas sem nexo. Mas é bastante tranquilo comigo, me disse uma vez que pareço com sua irmã. Na verdade, sou a única pessoa com quem ele tem algum contato. Vamos entrar lá dentro, vai ser o primeiro com quem vamos conversar e quero que o conheça.
— Mas tem certeza de que precisamos entrar lá agora? Não é melhor conhecer o resto do hospital? Eu não vim preparado para conversar com os pacientes.
— Ahahaha... Deixa de bobagem, querido! — dessa vez a risada rascante dela entrou como uma navalha no ouvido de Mancuso, — Você é o todo poderoso dr. Mancuso, psiquiatra renomado de São Paulo. Além do mais, só vou te apresentar a ele, só isso.
Um dos auxiliares de enfermagem abriu a porta da cela e voltou para ala de pacientes. Eles entraram. Sentado na cama sem colchão, estava Barcelos.
— Olá Barcelos, trouxe um amigo meu para conhecer você.
Barcelos não reagiu, continuou sentado na cama, olhando para a porta por onde os dois haviam entrado. Alguns longos segundos depois, ele se levantou e foi na direção de Mancuso. Os dois se entreolharam. Realmente se pareciam um pouco, o porte, os cabelos castanhos meio anelados, o nariz grande e adunco. No segundo seguinte, Mancuso não viu o que caiu sobre sua cabeça. Quando voltou a si, estava sentado na cama da cela, encostado na parede, vestindo o uniforme de calça azul e blusa de algodão cru. Sua primeira reação foi correr para a pequena janela da porta trancada.
— Ei, Adelaide, isso não tem graça! Enfermeiro, me solta! Eu sou o dr. Mancuso! Me tira daqui!
Ele viu Adelaide já quase no final do corredor, virar para trás e olhar na sua direção rindo com os lábios e com os olhos. Ao seu lado, um homem alto, todo de branco e carregando sua maleta de médico caminhava despreocupado. Mancuso gritou com mais força, chamando pelos enfermeiros e pelo diretor do hospital.
— Não sou louco, por favor! Me tirem daqui! Eu sou médico, ouviu?
Ele sacudiu as grades da pequena janela na porta, esmurrou a porta até sangrar as mãos e andava pela pequena cela como um animal furioso, gritando o nome de Adelaide, até encostar no canto da cela e deslizar até o chão colocando as mãos na cabeça.
— Não... pelo amor de Deus...não...

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Rachel Baccarini

E-mail: rachelbaccarini@hotmail.com

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