Natal Trágico


Luiz Alexandre Kikuchi Negrão

Às vésperas do Natal de 2003, no final da tarde, voltando do plantão do pronto-socorro, vi encostada à parede uma balança velha dada à minha mãe e fechei o portão de casa. Bem nessa terça-feira tudo resolveu ocorrer ao mesmo tempo e não daria para eu descansar.
Os cães latiam alto com raiva para os fundos da casa. Ao telefone, recuperando-se do câncer, meu pai conversava com seu advogado sobre a aposentadoria, mas com tantos pontos e vírgulas das regras ninguém entendia – como advogado opinei que deveria conseguir toda documentação que pudesse e cumprir todos os requisitos juntos.
O vizinho da casa da frente, que chamou a Polícia Militar – PM, depois ligou para minha mãe para avisar que havia dois homens armados no portão. Agora os latidos também estavam na frente da casa. Mamãe me passou o recado do assalto e falou da velharia amaldiçoada, que tinha sido furtada de uma cidade-fantasma. Ouvi algo no telhado que dava para o vizinho de trás e saí correndo para fechar portas e janelas.
Meia hora depois, duas viaturas da PM chegaram. Pouco antes, barulho de pessoas correndo além dos latidos da casa da frente sentido Avenida Ricardo Jafet (‘Imigrantes’). Nos fundos veio o estrondo da quebra do telhado e na frente, a campainha. Soldados entraram e correram até o bandido. Outros milicianos capturaram um adolescente, o do desastrado do telhado e deixaram escapar o fugitivo que foi para a ‘Imigrantes’.
Na rua os dois presos foram apresentados a mim. O adolescente, que carregava a balança, e o tio – o do telhado -, identificado como Natal Furtado. De dentro mamãe falou para deixar a balança com os dois e meu pai pediu para não levar adiante. Os policiais pediram para acompanha-los até a delegacia de polícia para registrar a ocorrência. Expliquei que estávamos dando a velharia e que a telha dos fundos iria ser trocada. Os policiais militares libertaram os suspeitos, pegaram os carros e foram embora. O vizinho olhou para mim e dispôs as mãos com as palmas para cima.
Mamãe me puxou para dentro para ajudar meu pai a arrumar o telhado. Mal deu para entrar: ouvi forte barulho de batida de carro e de buzina que não parava e saí para espiar. Na esquina Natal e o sobrinho foram atropelados e morreram; o motorista também.

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Luiz Negrão

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