Cores do Céu Antártico


Luiz Alexandre Kikuchi Negrão

No laboratório, no dia em que é lançada a URV (Unidade Real de Valor), Amilton Mendoza transforma rolos de filme em fotos. Está habituado com esse ambiente de quatro braços de comprimento e um de largura, luz vermelha e cheiro forte de produtos químicos. Fotógrafo profissional, casado com a dona de casa Núria e sem filhos, ele tem 38 anos, trabalha no Foto Amparo, loja de fotografias da família em Amparo, interior de São Paulo. Está em sociedade apenas com o irmão caçula Tomás, cinco anos após a morte do pai e ex-sócio, Lucindo Mendoza, fundador do negócio faz quatro décadas, que tira e revela fotos 3 por 4, monta álbuns e cobre casamentos e eventos. O negócio não vai bem, as contas juntam-se às anteriores e os irmãos priorizam quais pagar. Tomás toma a iniciativa, Amilton resolve à sua maneira e terá que lutar pela vida.
No dia da URV o caçula decide fechar as portas do Foto Amparo.
- Amilton, tenho esposa e quatro filhos e você, só a Núria. Levei nas costas o Foto Amparo em memória do Seu Mendoza. As contas da loja não fecham e vou encerrar o negócio - disse Tomás.
- Mas vai me deixar desempregado?
- A partir de agora é cada irmão por si – responde Tomás.
Com tino comercial, o caçula consegue trazer os antigos clientes para sua loja de fotografias na cidade – a Tomasfoto. Amilton consegue trabalhos simples, alguns ‘frilas’ (de freelancer) para amigos comerciantes, embora insuficientes para pagar suas despesas.
Na véspera do feriado de Tiradentes, em sua casa, com cozinha, quarto, banheiro, sala de visita, estreito corredor e a vaga para um carro na frente, aos pés do Cristo Redentor em Amparo, Amilton recebe importante telefonema.
- Bicho, aqui é o Sérgio Jorge. Soube que está por conta própria. Devo muito ao Seu Mendoza e a vocês do Foto Amparo. Faço um convite de trabalho. É bem pago: são 10.000 URVs para tirar fotos da natureza.
- Que legal! Onde é? O que é preciso fazer?
- O trabalho é na Antártida. Topa?
- Sim. Vai me ajudar muito. É o que amo fazer.
- Só tem três condições: chegar amanhã até às 8 da noite no Porto de Santos naquele navio da USP; apresentar-se ao Professor Hering (é aquele da barba vermelha que coleciona tubos de gelo e caça miniaturas de camarão) e ajudar nas pesquisas dele; e me entregar as fotos. O resto dou conta: vou agilizar a papelada e depois adianto a grana para você se virar por lá.
- Pode contar comigo. Amanhã à noite estarei a bordo com o Professor. Muito obrigado. Até a volta com as fotos! Deus lhe pague! Amilton conclui e desliga o telefone. Do lado, Núria ouve parte da conversa e pergunta:
- Antártida? Amilton, você vai quando?
- Vou amanhã de manhã para dar tempo de chegar amanhã à noite no Porto de Santos. Vou ficar um tempo. Não sei, meses talvez. Vou receber dez mil URVs para tirar fotos de animais, do gelo, do céu. Agora é outono, mas como é, vou levar muita calça e blusa, luvas, coisas quentes. Você cuida de tudo?
- Sim. Sempre apoiarei meu amor. Vou pedir emprestado ao meu irmão Toninho e à mãe. A esposa reza pelo êxito da empreitada e pela vida e saúde do marido, que arruma as malas, materiais e os equipamentos de trabalho. A noite Sérgio Jorge dá uma passada rápida com um pacote de dinheiro e Amilton deixa quase tudo para a esposa – na Antártica não tem bar para gastar.
Na rodoviária de Amparo o fotógrafo inicia sua jornada rumo à Antártida. Despede-se de Núria com beijo na boca e toma ônibus rumo a São Paulo. Na capital paulista da rodoviária do Tietê vai à estação do metrô e segue à rodoviária do Jabaquara, de onde parte para Santos; na cidade litorânea pega ônibus local para chegar ao Porto de Santos e lá segue a pé até o píer para embarcar no navio oceanográfico Professor W. Besnard. Não tem muita opção para ir à Estação Antártica Comandante Ferraz: ou vai nessa embarcação ou no navio Barão de Tefé ou em vaso de guerra da Marinha Brasileira. Vale anotar que os sucessores os navios Almirante Maximiano e Ary Rongel e cruzeiros turísticos vão surgir muitos anos depois e realizar viagens apenas de outubro a de março, durante o verão antártico.
A bordo do W. Besnard, Amilton conhece o Professor Vörös Hering, com quem vai trabalhar como assistente de biólogo marinho na Antártida. Baixa a cabeça para a porta do navio, o húngaro de Tihány, naturalizado brasileiro tem barbas brancas que se confundem com o cabelo cheio (nerd clássico), 65 anos, usa calças com suspensórios gastos, é biólogo e oceanógrafo do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR), com linhas de pesquisa sobre o krill e o gelo antártico. O novo chefe apresenta ao assistente a Rede Mundial de Computadores (Internet), que por rede de telefone discada chega ao público em geral neste ano de 1994 e serve de ferramenta a ele desde o início da década de 1980 para comunicar-se com colegas e outras universidades e ensina os primeiros passos para usar o computador e a Internet. A ele Amilton mostra sua câmera profissional Nikon e como usá-la e tira algumas fotos do porto, do mar e do interior do navio.
Dias de viagem para os cinco mil quilômetros se passam e a primeira escala é Ushuaia, na Terra do Fogo, Sul da Argentina. É quentinho e o ar tem cheiro salgado. Lá passam um dia e meio para reabastecimento e passeio. Enviam correios eletrônicos ao Brasil e Amilton aproveita para fazer registros da região toda nevada, além da fauna de pinguins, focas, orcas, baleias e aves.
Os mil quilômetros restantes até Antártica não podem ser de navio, pois ao chegar perto dessa ilha, a grossa camada de gelo permite a chegada de apenas navios quebra-gelos no continente gelado em poucos dias, além de ventos fortes e ondas gigantescas chacoalham o navio. Por isso, a terceira escala é o porto chileno de Punta Arenas, de lá deve-se seguir de avião à quarta escala, Ilha Rei George ou 25 de Maio, a cem quilômetros da Península Antártica na Antártida (no verão dá para ir de navio).
Horas depois na Base Aérea Teniente Rodolfo Marsh Martin, com pista de de pouso, junto à Base Presidente Eduardo Frei Montalva, da Fuerza Aérea de Chile, chegam à Antártida. O ar salgado é de congelar o nariz. De helicóptero os tripulantes voam ao outro lado da Ilha Rei George para a Estação Antártica Comandante Ferraz e são recebidos por três pessoas, uma delas dá as boas-vindas e apresenta-se como sendo o primeiro tenente Yassuo Kikuchi. Com 55 anos, duas décadas e meia na Marinha e dos Mares do Sul, bastante falante, o tenente está desde a inauguração da Estação Antártica Comandante Ferraz em 1984. Com o biólogo, o militar conversa com este velho conhecido. Antes de descer da aeronave, Amilton faz vários registros das paisagens locais. Professor Vörös, Amilton e tripulação descem ao gelo, puxam as pesadas bagagens até a Estação Antártica. São levados a cabina onde vão ficar até completar a pesquisa. A distância no gabinete, com quase dois metros de altura, cabelos castanhos curtos, olhos verdes, barba feita e farda limpa e brilhante, voz firme, o capitão de fragata Valter E. Curt observa os recém-chegados e interpela o tenente:
- Quem são esses dois paisanos? É inverno! Não deveriam estar aqui!
- Capitão, foram mandados pelo Ministério da Marinha. Cumpro ordens.
- Eles vão seguir meus comandos, correto?
- Sim, vou deixá-los a par das rotinas.
- Não criarão problemas, estamos entendidos?
- Sim, Senhor Capitão – o tenente Kikuchi bate continência e sai do gabinete sem dar conta de sua responsabilidade. Mesmo sendo conhecido e acostumado, o Professor Hering nunca passou o inverno lá e Amilton nunca pisou o continente.
Horas depois, o capitão Curt, antecipando-se à tropa e ao Professor Vöros e Amilton, apresenta-se como o administrador da Estação. O Capitão janta com os recém-chegados e orienta sobre a rotina militar. Avisa sobre as temperaturas que poderiam chegar a -20°C, com sensação de -40°C, com ventos fortes e alta radiação solar. Explica que em quatro missões de Punta Arenas à Estação Comandante Ferraz aviões Hércules abastecem com paletes de comida e mantimentos lançados de paraquedas. O biólogo e o fotógrafo são avisados dos eventuais problemas de saúde, como a catarata.
Depois, trazendo Amilton a sua cabine o tenente Kikuchi explica em suas palavras os comandos do chefe. O convidado constata no seu banheiro luz vermelha e potes com fixador, revelador, bandejas e tubos de filme fotográfico e pergunta sobre esses objetos, e descobre que o anfitrião também é fotógrafo e cineasta amador, Amilton ensina truques para as imagens não ficarem ruins ao enquadra e depois ao revelar. Discorrem por horas sobre Cinema e Fotografia.
Nos sete dias seguintes, o biólogo e assistente conhecem a Estação toda verde e de telhados cor de abóbora, com laboratórios e módulos. Com sotaque húngaro e jeito de paizão, Dr. Hering orienta a Amilton o que fazer nos acampamentos, principalmente com a esterilização das mãos, do vestuário e dos equipamentos, o que não fazer e prever o que pode dar errado. Ainda, Amilton aprende a pesquisar na Internet, usar o processador de texto, planilhas eletrônicas e manipular arquivos eletrônicos, criar conta de e-mail, escrever e enviar correio eletrônico; a trabalho anexa os dados das pesquisas; e em mensagem particular, avisa ao colega Sérgio Jorge sobre o progresso da viagem. Cientista e assistente buscam ajustar-se à rotina de sono, refeições, experiências e outras tarefas da base militar, mas não praticam atividades físicas.
Três dias depois, com ventos fortes, à luz de potentes lanternas com pilhas grandes Raiovac, com óculos escuros de neve, luvas e botas grossas e muito agasalho, Professor Hering e Amilton partem com equipamentos ao destino do mapa. Junto a eles o tenente Kikuchi diz:
- Está escuro e frio acima do comum aqui. Não querem esperar mais um dia para ver se o tempo melhora?
- Está tudo bem conosco – diz Amilton. - Sim, Ok – o Professor Vörös Hering simultaneamente. Ambos partem para a primeira parada de acampamento e o tenente vai ao gabinete.
- Capitão, o senhor vai deixá-los morrer lá fora?
- Não é isso que procuram? Vi que tentou. São suicidas. Nem você, muito menos eu, tenho coisa nisso.
Em seguida, o oficial nipônico pega um rastreador e corre com esquis até a direção dos pesquisadores, que a pé e com pesados equipamentos são alcançados não muito longe.
- Amilton, esta é seu amuleto da sorte. Leve por onde for – diz o tenente.
- Deus lhe pague, Yassuo. Amilton guarda dentro de seu “anorak” perto do pescoço para não perder e com o Professor segue em frente. O tenente volta.
O acampamento fica a horas de dura caminhada. Muito cansados, chegam ao local, cavam no gelo buraco e fazem iglu improvisado para proteger as barracas de nylon e Amilton dá falta da sua câmera fotográfica. Lá o assistente do biólogo cava inúmeras vezes o gelo, coleta pequenos camarões, coloca em tubos que fecha com borracha e guarda na mala térmica, enquanto o biólogo coloca etiquetas e numera os tubos. Em sua mente o fotógrafo imagina nas montanhas de neve e de gelo o teatro mágico em que Harry Haller, o “Lobo da Estepe”, conhece Hermine, a amiga Maria e o saxofonista Pablo – corredor em forma de ferradura com espelhos e cinco portas por onde Harry entra e recorda momentos de sua vida.
Já dentro da barraca desfalecido, Amilton não sabe que o biólogo tira fotos do krill e da paisagem local e do céu colorido. A aurora austral muda de cores e formas a cada noite. Seriam ainda mais deslumbrantes que as vistas na Falklands, em Ushuaia, na Nova Zelândia, na Tasmânia e na Geórgia do Sul. Coroas, “faint”, “sky” / “fire”, fragmentadas em camadas, arcos, estrias e no horizonte são as possíveis. Verdes, azuis, vermelhas, amarelas, lilás e muitas cores podem ser vistas.
Em diversos acampamentos por cem noites, à média de um por dia, os dois dormindo e alimentando-se mal, repetem esse procedimento. Estão no pior do inverno entre julho e agosto com temperaturas muito mais baixas e os ventos fortes das montanhas à costa. Os óculos especiais evitam a catarata. O nariz sangra e os ouvidos parecem que vão explodir para os dois acampados, além de dores musculares. Na centésima noite, Amilton pensa no sacrifício pelas 10 mil URVs. Que fria em que se meteu. Não tem mais volta. Com contusão nos braços e dor nas costas, a pá escapa da mão de Amilton e acerta seu braço direito e jorra muito sangue. A maleta térmica com as amostras rola na neve. Com elástico grosso e uma blusa corta vento o especialista em krill faz um torniquete e pede ajuda por rádio. Agonizando, lamenta as fotos que não conseguiu tirar.
Com ajuda da missão chilena no continente, horas depois o acidentado Amilton é resgatado pelo tenente Kikuchi com moto de neve, passa pela Estação (onde o biólogo é deixando com os equipamentos e a maleta com as amostras) e leva Amilton à Base Presidente Eduardo Frei Montalva. Com gangrena no braço, no hospital da Base, o acidentado tem o braço recuperado, fica um dia e meio dormindo sedado e outros sete dias em recuperação. Teve sorte: não sofreu amputação, nem necessitará ser levado ao Brasil ou Chile.
Em moto de neve conduzido pelo tenente japonês, o fotógrafo é levado do Chile e vai ao Brasil, dando a volta na ilha até a base brasileira. O Capitão Curt apenas observa – com anos de experiência e treinamento árduo, nunca teve essa oportunidade e esses dois paisanos conseguiram sem treinamento e na pura sorte.
Na cabina do assistente, os visitantes de Amilton são familiares.
- Boa noite! Aqui sua Nikon e tubos vazios. Favor, me perdoar. Foi por boa causa. Agora no laboratório - o Professor Hering sorri.
Em um dos laboratórios da Estação o tenente Kikuchi diz:
- Amilton, veja o que havia nos filmes.
- Que maravilha! Yassuo, eu não teria feito melhor.
- Estas são suas. Aquelas são do Professor.
- Não fui eu que tirei. A autoria é sua e do meu chefe – responde Amilton.
- Minha, não. Nikon sua – diz o biólogo.
- Veja, aprendi muito o que me ensinou. Apenas revelei e selecionei as melhores. Por favor, aceite. É a sua vida, seu ganha pão – diz o tenente.
Amilton não recusa e guarda as fotos. Ao lado deles, o Professor fica intrigado e depois muito contente: - Wolf Vishniac acertou! Das boas surpresas da análise das primeiras amostras de krill e de gelo variações climáticas no globo terrestre: além de confirmar as hipóteses de aquecimento global, o biólogo constata no microscópio que as impurezas na maleta térmica são bactérias que sobrevivem sem luz, nem água, apenas com gás nitrogênio e monóxido de carbono, e formula a hipótese que pode haver vida fora da Terra. Com os militares até o final do inverno em outubro, o cientista e o assistente prosseguem o processamento das análises, Amilton aprende a digitalizar as fotografias no scanner do chefe e encaminha por e-mail a Sérgio Jorge as imagens das auroras austrais. Algumas delas, com a autoria de Amilton Mendoza, constarão de edições da “Revista Manchete”, “Popular Photography” e outras publicações especializadas.

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Luiz Negrão

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