Ter gratidão


Luiz Alexandre Kikuchi Negrão

Depois de fazer a última revisão de estudos e colocar o material e celular na mochila, Patrícia Yumi estava para ir à faculdade para fazer a última prova do semestre. Antes da filha única sair de casa, Dona Cida entrou no caminho e mexeu em seu rosto. A filha deixou cair no chão Jiji, o gatinho preto de pelúcia de “O Serviço de Entregas da Kiki”. Fazia dias que observava dobrinha perto do olho esquerdo da jovem, estranhou e pediu para que tomasse cuidado. Era intuição de mãe.
Ao abrir a porta de casa, a jovem escorregou no capacho e derrubou o que carregava. Dona Cida ajudou. Com a testa vermelha e bufando, a filha gritou:
- Não é possível. Do que está rindo?
- De nervoso. Yumi, que barriguinha é essa?
- Tá me chamando de gorda? - A filha virou as costas e saiu andando.
Na garagem ao abrir o carro, derrubou as chaves no bueiro, escorregou para trás, caiu batendo as costas e por pouco não bateu a cabeça. Xingou: “É hoje! Não querem que eu faça esta maldita prova!” Levantou-se, sentindo todos os ossos doendo. Abriu o ralo, retirou as chaves. O cheiro revirou seu estômago e ela vomitou. Lavou as mãos na torneira que avistou. Abriu o carro dos pais, respirou, ligou o motor, trancou as portas e seguiu em frente.
Era preciso recuperar os imprevistos. O percurso que levaria quarenta minutos sem tráfego intenso estava levando mais de duas horas. Tudo congestionado! Patrícia e outros motoristas atravessavam cruzamentos sem parar. Até que um parasse junto ao outro. Espaço e tempo curtos. Pegou atalhos, desconsiderando o que o aplicativo orientava.
Chegou à sala da faculdade com a prova em andamento. Respirou fundo, os olhos voltaram-se todos para a folha almaço. Leu as questões, respondeu às questões que sabia e outras, chutou a resposta e criou a resolução com base na pergunta.
Passadas algumas horas, sentiu que o cérebro ficou na prova. Mesmo com vento no rosto, sono e dor em todo o corpo da queda na garagem. Não ficaria mais ali, decidiu voltar para casa dormir.
Na direção a jovem seguia pela avenida para passar antes que o semáforo ficasse vermelho e outro, antes de ficar verde para ele, acelerou até que pegasse o lado esquerdo do carro dirigido por Patrícia e ricocheteou e abraçou o poste. O carro da estudante girou até parar no cruzamento.
Chamado o resgate, este retirou Yumi estourando o vidro lateral e levou ao hospital mais próximo enquanto os bombeiros tentavam retirar das ferragens o motorista do outro carro. Dentro da ambulância, a paciente, que era mantida acordada, sentia dor e toda quebrada por dentro, lembrava o aviso da Dona Cida e os imprevistos em casa.
Na Santa Casa de Misericórdia durante horas Patrícia passou por grande cirurgia, ficou sedada entre a vida e a morte. Chamados pela equipe do resgate, Dona Cida e o marido, Sr. Mamoru Kibô, foram ao local para acompanhar o atendimento. Durante a espera, ela comentou:
- A Yumi estava com dobrinha bem saliente perto do olho.
- Assim eu ouvi: que um sinal no rosto da pessoa poderia ser uma forma de comunicação usada pelos antepassados para avisar de perigos. Dobras, manchas...
- Em mim deu um aperto no coração quando avisei a Yumi. Na porta de casa, caiu por acidente e ajudei. Aquela barriga... Depois rezei para pedir ajuda com o anjo da guarda e os meus santos.
- Mulher, você deixou? Com meus pais aprendi a ouvir mais e observar. Sabia que tinha que tomar cuidado, não desperdiçar e ter paciência – disse o marido com a fronte franzida e avermelhada.
- Ô, amor, vai ensinar paciência pros jovens. Com celular, tablet, computador, eles andam muito acelerados.
- Mas eles falam, digitam, ouvem e leem. A Patrícia teve muitos avisos...
- Ai, credo! Vamos à capela? – propôs Dona Cida.
Pela vida e convalescença de Yumi e agradecer aos antepassados acenderam velas. Depois subiram ao centro de terapia intensiva.
Com cheiro forte de desinfetante, ruídos intermitentes dos aparelhos e do soro pingando no acesso, a jovem era mantida viva. Até o pai caiu no choro - e beijou-lhe a mão. Dona Cida resolveu ficar e o marido saiu para resolver as pendências do acidente.
O outro acidentado tinha morrido nas ferragens do carro - Mamoru Kibô soube na delegacia. Ele levou ao hospital o Jiji para Patrícia Yumi, que se recuperava, e o enxoval de bebê para a Kiki, que estava no centro de terapia intensiva neonatal.

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Luiz Negrão

E-mail: luizalexandren@gmail.com

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