Atestado de vida


Luiz Alexandre Kikuchi Negrão

Na manhã de 14 de outubro de 1978 na sede do DOPS, São Paulo, busca confirmar o investigador da Polícia Civil Flávio da Ponte:
- Por favor se sente. Você é Darlene dos Santos, filha de José dos Santos e de Maria dos Santos, estudante de Doutorado em Economia na Universidade de São Paulo, nascida em 11 de janeiro de 1944, em Cerqueira César, Estado de São Paulo? Sou o investigador que a intimou para prestar depoimento.
- Sim. O que fiz de errado? Para conseguir emprego, solicitei o Atestado Ideológico e recebi esta intimação – responde Darlene, mostrando o documento e o requerimento de Atestado de Antecedentes Políticos e Sociais.
- Está bem. Vejo que veio resolver sua situação aqui. Olha, é você nessa foto? Conhece essa moça?
- Sou eu aqui – aponta a moça ao lado e gaguejando – mas não lembro dela...
- Flávio, depois quero esse inquérito pronto nas minhas mãos – comanda o Dr. Sérgio Paranhos Fleury – E sem falta, viu? – E sai da sala.
- Pois não, chefe.
- Como não sabe, broto? – interrompe berrando o capitão do Exército Carlos Delgado Fonseca – Essa morena jambo é Helenira Resende de Souza Nazareth! Está certa mesmo que não se lembra?
- Essa na foto sou eu. Com essa aí conversei. Ela nasceu no mesmo dia e na cidade onde nasci, mas não é minha amiga, não.
- Vai pra dentro, comuna! – O capitão arremessa Darlene da sala da entrada para dentro do corró, pegando-a com força o braço - Agora vai dar o que precisamos.
- Pega leve, Capitão Caveira! Precisamos de uma confissão. Não, de um corpo para sumir - Flávio para de datilografrar as peças do inquérito de Darlene, entra no corró e repreende.
- Faz sua parte. Tô fazendo a minha. Hoje tá foda! Esta aqui é uma tábua. De frente e de trás! Não dá vontade de enrabar! – O capitão arranca a roupa de Darlene, prende a uma maca fria.
- Ai! Que culpa tenho? - Darlene chora.
- Agora vai falar! – diz o capitão, que coloca um funil na boca, despeja água suja de um galão de baixo da maca. Darlene engole parte do líquido, tosse, vomita parte, fica tossindo e chorando sem poder falar.
- Tá louco? Tubaína! Você vai matar e jogar o corpo lá em Perus? – Preciso resolver e não arranjar mais ocorrências.
- Gostou dessa menina? Está nuinha para você comer. Carninha mal passada – ironiza o capitão – ela vai ter que falar – e volta-se para Darlene: - Você, mocinha, não pensa que acabou não! Você vai sentir o que o batalhão lá no Araguaia fez em 72 com a Helenira. Ô carninha gostosa! Guerrilheira comuna, cacei com prazer! Ela sim era um mulherão, não resistiu a ninguém, satisfez todos, levou um tiro na cabeça e foi enterrada ali mesmo na mata.
- Cala a boca, seu falastrão! – ela tem que falar e não ouvir você falar como você e os soldados comeram a amiga dela. Precisamos que ela colabore. Tem que desmantelar o aparelho comunista. Viva a Revolução!
- Vou continuar – O capitão pega a caixa e os fios do pau de arara e prende os eletrodos nos mamilos e no clitóris de Darlene – Agora ela vai falar.
- Ai... – balbucia a estudante. Depois de ligado o aparelho, grita: - Aaaaaai...! – e desmaia.
- Perdeu a cabeça? O que ela te fez, cara? Não vai funcionar! Não vou limpar sua sujeira – Flávio tira o capitão de cima de Darlene e empurra para o canto.
- Não. Vou arrancar a confissão dela. Me deixa em paz! – o Capitão Caveira berra, retira os fios do pau de arara da jovem, sacoleja a estudante, que acorda. Flávio mantém-se do lado para tomar nota das palavras da jovem.
- Olha, senhor. Não sou quem busca. Essa foto foi na frente do Academia do Professor Shimada na Caio Prado, faço ioga. Foi no dia que ela deu de cara comigo. Nunca mais a vi – respondeu chorando Darlene.
- Mocinha, sem mentiras! USP é um antro de subversivos! Como não conhece a Helenira, o CRUSP, o Zé Dirceu e estudantes no Congresso de Ibiúna? – O capitão fica cada vez mais nervoso.
- Só estudo. Vim pegar o atestado para trabalhar. Sou menina de família, meus pais no interior pagam tudo para mim. Não me interessa a Política – Darlene responde devagar – recebi a intimação e não fugi.
- Fugir? Adoro caçar! – o capitão fica exaltado e pula em cima da jovem – agora é vou comer minha caça! – Beija à força e abre a braguilha da calça para violá-la.
- Sai daí! – berra Flávio, depois de anotar a declaração de Darlene, derrubar os apontamentos no chão e tirar à força o capitão de cima da estudante – é mulher honesta. Veio pegar o atestado para trabalhar. Não tem nada de subversiva. Como ela vai casar depois que você deflorar?
- Paisano caxias, não tem futuro. Por isso é que a Revolução está afundando – Esbraveja o capitão e pula de volta para cima da jovem.
- Socorro! Me ajuda, moço! Avisa o Ministro Delfim Netto. Ele é meu orientador – pede Darlene. “É vida ou morte”.
- Aaaaaaaaai... Merda! - Pasmo e esquecendo que o pau de arara está ligado, o capitão encosta a glande em uma ponta e o peito na outra do pau de arara e é eletrocutado.
- Que confusão é essa? – O Delegado Fleury entra e joga a edição do dia do jornal “O Estado de São Paulo” nos braços do investigador – Tá lendo isso, Flávio? Ontem à noite, Generais Geisel, Colbery e outros afinaram. Não tem mais AI-5. Flávio, limpa essa bagunça.
- Porra! Sabe o que aconteceu? – Acordado pelo Delegado, o capitão é pego pelo colarinho, joga-o no canto.
- Você, eu quero fora! Volta pra a AMAN! Vai cuidar dos seus cadetes, do seu queridinho, o Cavalão. Chega de cavalguras! Os milicos faliram o país, está aí essa estudante do Delfim Netto para jogar na nossa cara. Herzog, Manoel Fiel Filho, Tino e a invasão do Tuca já ferraram a gente. O Romeu Tuma, o General João Figueiredo e o Presidente Geisel já sabem. A Revolução de 64 morreu – O Delegado desabafa.
- Vai em paz. Fiz o que pude - Flávio solta Darlene da cama, dá a roupa rasgada e o casaco que ele usava, continua a datilografar as peças inquisitoriais, bem como o Atestado Ideológico com os dizeres: “Nada consta. Nada que a desabone”, junta o requerimento da moça, informa para arquivar a ficha de Darlene com a expressão ‘não subversiva’, assina os documentos e entrega ao chefe.
- Flávio, me dá isso aqui – Pede o Delegado.
- Sim, senhor. Aqui está a pasta da requerente – o investigador pede para assinar os documentos e entrega o atestado à requerente, que o guarda com cuidado na bolsa.
- Obrigado, moço. Deus lhe pague! – sem olhar para trás, Darlene sai correndo da repartição e reza pela sua vida, Helenira e pelas outras mulheres.

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Luiz Negrão

E-mail: luizalexandren@gmail.com

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