Yama-Oroshi, além do vento forte da montanha


Luiz Alexandre Kikuchi Negrão

Saindo da cidade de Tōno, na província japonesa de Iwate, o ‘Japão Perdido’ mostrava-se no “kappa” das lendas e nas estátuas das matas ciliares junto ao Templo “Jokenji”. Ali estava com escapulário no pescoço, camisa preta “Pet Sematary” dos “Ramones”, bermuda de marca famosa mochila nas costas, “smartphone” moderno e com um exemplar de “15 Minutos Japonês” em mãos sem cicatrizes o solteiro Xámenos. Buscava sozinho histórias locais também sobre outro “yōkai”, como a “Yuki Onna”. Com mímicas, inglês misturado com japonês aportuguesado e com o aplicativo de localização do celular, percorreu a pé a estrada a partir do centro da cidade. Esta experiência sobrenatural restaria apenas em seu corpo.
A partir de famoso dólmen em meio a Tsuzuki-ishis, cedros perfumados, , horas depois chegou à clareira em que se erguia uma casa da Era Tokugawa, da qual por breve instante tirou fotos. Do cume das montanhas, soprava um vento que, além de querer arrancar as folhas das árvores, veio a derrubá-lo. Xámenos levantou-se e entrou na enorme construção de madeira.
Nas paredes o excesso de poeira fez tossir e ir de um cômodo a outro sem ficar parado, sem reparar muito no que havia no interior. Chegou à cozinha, onde da janela suja visualizou um porco-espinho preto e marrom do lado de fora. Neste momento, o vento escancarou a porta. Xámenos tossiu muito, vindo a fechar os olhos, mas conseguiu ouvir, além do uivo eólico, um gemido e ruído branco. Sobreveio rajada que fechou a porta. Dentre as teias de aranha e a grossa poeira, pendurado em gancho da parede enxergou um solitário objeto. Pegou na mão – era um ralador de madeira antigo e gasto – e guardou no bolso da mochila. Ouviu novos barulhos – havia rangido de madeira, mas também de alguém andando. Olhou ao redor e não havia ninguém. Da janela viu o céu alaranjado e os pássaros indo em direção às montanhas. Saiu pela porta da cozinha de volta à cidade.
Com a mata toda escura e úmida, Xámenos tirou da mochila calça e blusa, vestiu e seguiu de lanterna. Na altura dos Tsuzuki-ishis, ouviu passos próximos e olhou ao redor. Falavam inglês e conversaram em direção ao centro de Tōno. De lá se separaram – Xámenos foi ao seu “ryokan” e os outros foram a outros hotéis.
No quarto, Xámenos despiu-se e foi ao chuveiro lavar-se e depois ao ofurô relaxar da aventura do dia. Lá ficou por horas. O silêncio foi quebrado pelo mesmo ruído branco do casarão e algo se mexendo na mochila. Enrolou-se na toalha e correu em direção à cama. Na janela tinha um vulto, que não conseguiu saber o que era. Pegou o celular e tirou foto. O barulho vinha da floresta e no céu a lua e as estrelas mal conseguiam iluminar a mata.
O quarentão fechou a janela, colocou pijama, analisou a mochila e não encontrou o ralador que trouxe. Contudo, espetou o pulso direito em espinho, arrancou com a mão, lavou ambas e passou álcool e fez curativo. Foi para a cama.
Em sonho, caía neve, tudo ficou congelado e branco e com o vento forte vinha “Yuki Onna”. O súcubo arrancou-lhe todas as roupas, montou nele e o possuíu até desmaiar. Ao abrir os olhos estava de volta ao casarão da floresta, viu-se cercado de “yōkai”, como o “kappa” e outras entidades parecidas com as vistas no filme “A Viagem de Chihiro”, de Hayao Miyazaki. O vento forte da montanha fazia todos rodopiarem neste ‘Japão Perdido’ e não havia como escapar do tufão nem do imóvel.
Na manhã seguinte, na recepção, com olheiras, em inglês e no japonês improvisado do livro e do aplicativo de tradução, perguntou sobre ralador e “yōkai”. O pouco que compreendeu foi a palavra “yama-oroshi”. Saiu para tomar café da manhã e depois foi à Biblioteca Municipal de Tōno. Em inglês, pediu ajuda para explicar a palavra que mencionaram no “ryokan”, sendo esclarecido que era vento forte da montanha e que, quando um objeto completava cem anos, ganhava alma própria. Mostrou à bibliotecária o “smartphone”: a imagem tirada da janela do hotel era um enorme porco-espinho, com olhos brilhantes apontados em sua direção. Neste instante, o quarentão desmaiou.
Em um dos quartos do hospital da cidade, dias depois, Xámenos acordou. Havia sido levado do hotel para o nosocômio. Com antibióticos, a infecção estava tratada. O “smartphone” desapareceu.
Tempos depois, acessando do laptop de casa os arquivos da nuvem do antigo celular, não constatou mais nada. Neste instante, o pulso direito doeu. Ele olhou e verificou cicatrizes com desenho de alfinetes enfiados numa bola.

deixe um recado | voltar

Luiz Negrão

E-mail: luizalexandren@gmail.com

Pageviews desde agosto de 2020: 1790

Site desenvolvido pela Plataforma Online de Formação de Escritores