Seu Ticuti


Luiz Alexandre Kikuchi Negrão

Yasuo Kikuchi acordou com a linda lua de outono e as estrelas ainda brilhando. Ele e muitas outras pessoas sobreviveriam, mas deveriam abandonar o paraíso onde suas famílias viveram por séculos. As vacas mugiam como nunca e akakokko (albatrozes-do-pacífico) voaram em direção sul para Torishima, Iwojima e a imensidão do Oceano Pacífico. Olhando para os vulcões, o rapaz de dezessete anos franziu a testa e buscou ouvir algo diferente. O vento vinha do mar e balançava a floresta das samambaias-gigantes. tentou acalmá-las, lavou os úberes e ordenhou sendo empurrado de lado a outro. Desceu os cantis até sua casa, onde deixou um deles.
No café da manhã comeu arroz branco, kusaya (peixe fermentado) e salada de ashitaba (verdura local) e chá preto. A mãe, Dona Maye, perguntou (entre os moradores de Hachijojima no dialeto local e com outros japoneses na língua oficial):
̶ Filho, está preocupado com algo? É a ansiedade de fazer faculdade em Tóquio?
- Bem que gostaria. Não vejo a hora. Me parte o coração deixar sozinhos os senhores.
- Não se preocupe conosco. Seu primo já foi e vai ter melhores oportunidades do que na ilha. Não quer ser professor? – Perguntou o pai, Sr. Hyomatsu.
- Muito obrigado, senhores meus pais. Vou levar o leite até a loja na vila.
Atravessando a Hegoshida (floresta de samambaias-gigantes) com seus cogumelos luminosos e a praia de areias pretas, chegou à vila de Okago. Pouco mais adiante da entrada ficava a venda do Sr. Yamamoto. Entrou:
- Bom dia, Sr. Yamamoto. Tudo bem? Aqui está o leite.
- Bom dia, Yasuo. Tudo bem. Com você, também? Pensei que já estivesse na capital para fazer a faculdade. - Respondeu Sr. Ryuichi Yamamoto.
- Já me preparei para o curso de Pedagogia. Voltarei para dar aula aqui em Hachijo e poderei estar junto dos meus pais - disse Yasuo.
- É mais seguro. Faz pouco mais de vinte anos, em Torishima o vulcão entrou em erupção e todos morreram. Muitos daqui de Hachijo – lamentou o lojista.
- Os senhores meus pais me contaram dessa tragédia. Durante décadas, muita gente saiu daqui ou passou por aqui para ir ali em busca do guano e das penas do akakokko, alguns ficaram ricos, outros, como tios e primos morreram queimados no vulcão.
- Na América do Sul, Brasil, estão oferecendo vagas para famílias inteiras para enriquecer e voltar rápido –entrou na conversa um cliente da loja no japonês oficial.
- Muito obrigados – responderam no idioma oficial Sr. Yamamoto e Yasuo ao cliente.
Yasuo saiu da loja em direção à sua casa. Passou em frente à escola e encontrou um de seus colegas:
- Olá! Bom dia, Atsuji! Tudo bem?
- Bom dia, Yasuo. Tudo bem. Treinei kendô hoje. Já está pronto para a faculdade?
- Ainda não. Não gostaria de deixar meus pais sozinhos aqui.
- Eles vão ficar contentes se você conseguir se superar.
- Acabei de ouvir que há vagas para o Brasil para a família toda.
- Também ouvi. Trabalhar, juntar dinheiro e voltar para cá. Juntaríamos dinheiro e tudo seria melhor.
- Acho melhor a faculdade. Educação é a alternativa mais segura para melhorar de vida. Obrigado por me ajudar a pensar. Tenha um bom dia.
Yasuo retomou sua volta para casa. As areias pretas e as águas geladas do Pacífico massageavam seus pés e a brisa balançava seus cabelos. Os akakokko voavam para sul, para Torishima. Brasil seria interessante? Não, América do Sul era longe, a viagem deveria ser cara e o barato sairia caro.
Subiu a pé a montanha no meio da Hegoshida. Os mosquitos zumbiam e o cheiro de mato fresco pareciam dar saudades. Entrou na chácara dos pais.
- Vocês, vaquinhas. Estão muito nervosas, hoje. O que acontece? – arruma Yasuo no curral. Neste momento pouco antes do meio-dia, akakokko, outros pássaros voaram rumo sul. Insetos estavam muito agitados para um dia frio de outono.
- Tem algo muito errado... – mal Yasuo desabafa, o chão se tornou um barco em mar agitado.
Yasuo olhou ao seu redor. Para cima: não havia lava nem fumarola dos vulcões. Para baixo, fumaça e tudo desabando. Correu para casa socorrer os pais. Em casa, puxou os pais de dentro de casa:
- Meus pais, vamos ao abrigo! Não vi fumaça nem lava no Hachi-fuji e o Mihara-yama nem no Taizen-san. É o pior terremoto que já enfrentamos.
- Yasuo, solte as vacas na pastagem. Vou com sua mãe ao abrigo. – disse Sr. Hyomatsu.
- Filho, depois venha direto ao abrigo. – Completou Dona Maye
Mal saíram da casa, a construção desabou. Yasuo soltou as vacas e prendeu perto da pastagem para os terremotos, em campo aberto, longe do caminho da lava.
Foram dez minutos de terror e destruição. Nas vilas de Hachijo e da vizinha Hachijokojima muitas casas pegaram fogo, mas não se espalharam muito. No início os ilhéus acharam que os tremores aconteceram apenas no Arquipélago Izu, onde se situavam Hachijo, Aogashima, Torishima, entre outras e tentaram buscar ajuda por rádio à capital, distante pouco menos de trezentos quilômetros por mar. Não tiveram resposta. Alguns dias depois, marinheiros nos barcos de pescas trouxeram notícias. Tóquio, Yokohama estão destruídas. Aqui em Hachijo está melhor. Tempestades de fogo acabaram com tudo o que havia na frente. Milhares de mortos e feridos. Milhões sem casa.
As vacas, os pais e alguns amigos e conhecidos sobreviveram. Durante semanas dormiram na casa da família de Atsuji, que não desabou. Todos se organizaram em mutirões:
- Vamos salvar o Sr. Yamamoto e senhora! – Disse um dos vizinhos.
- Vamos! – Em coro, muitos se ofereceram, incluindo Yasuo. A prioridade era salvar vidas, pessoas soterradas e feridas.
Minutos depois foram retirados dos escombros os senhores Ryuichi e Kibo Yamamoto, que foram encaminhados a um hospital improvisado com os médicos da ilha.
Posteriormente, surgiram outros mutirões para consertar as casas e as ruas e estradas. Os Kikuchi colaboraram para a reconstrução da própria casa e a de diversos vizinhos. Houve uma missa em memória dos mortos e antepassados. Por carta, a família Kikuchi soube do primo que estava na capital, que foi salvo e estava na casa de parentes em Tóquio.
Apesar de estarem na região metropolitana de Tóquio, a ajuda financeira da capital nunca chegou, o dinheiro mal dava para reconstruir a própria metrópole. Na mente de muitos, além desse terremoto, ficou o anúncio de vagas para trabalhar e enriquecer no Brasil.

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Luiz Negrão

E-mail: luizalexandren@gmail.com

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