Rosane Rommel Cardoso
Lacerda caminhava sobre o piso de lajotas sem graça e observava as cores esmaecidas, já sem vida. Sempre achara que os pisos tinham a ver com o ambiente, não somente por uma composição estética, mas para refletirem o objetivo do lugar. Eram frios e sem compaixão nos bancos, amadeirados nos ambientes calorosos e assépticos e impessoais nos hospitais. Minutos antes, estava a percorrer com os olhos os nomes no quadro de avisos. Não teve alternativa, teria que esperar meia-hora.
Dirigiu-se à parte antiga do cemitério. Os túmulos mais pareciam pequenas casas numa cidade abandonada e de ruas planejadas pelo destino, com anjos cabisbaixos de guardas. A vegetação crescia desordenada entre as rachaduras das calçadas, como dedos que quisessem romper a terra e emergir para o mundo dos vivos. Lacerda ouviu o som inconfundível de passadas de solado novo na lajota emparelhando com as suas. O homem perguntou:
— Vai ao enterro de Fausto?
— Sim — Lacerda observou o homem alto ao seu lado. — Vamos ter de fazer hora.
— Cheguei muito cedo. Não me conformo. Já faz um tempo que aqui estou a caminhar de um lado para outro — falou o estranho.
— Eras parente do morto? — perguntou Lacerda, atribuindo ser sofrimento a palidez no rosto.
— Não.
— Amigo? — insistiu Lacerda.
— Não posso dizer que fosse um amigo — disse pensativo.
— Colega, conhecido?
— Posso lhe assegurar que o conhecia muito bem. Um sujeito jovem para morrer e que levava uma vida prazerosa. E você está aqui por quê?
— Já que não és parente e nem amigo do falecido, vou te confessar que nem o conhecia. Costumo vir a enterros de desconhecidos.
O outro o olhou com espanto.
— Você vem a enterros de pessoas que não conhece! Mas por que cargas d'água, meu Deus?
— Nem sei o porquê de fazer isso. Não consigo evitar — respondeu Lacerda num sorrisinho torcido. O perfume adocicado do outro já estava lhe enjoando.
— Não acha muito fúnebre a cerimônia toda, o choro, a dor, a hipocrisia? Eu não gosto nada disso, aprecio demais a vida.
— A vida em si me tem sido enfadonha — respondeu Lacerda. — Não sei o que daria para ser tomado por uma forte emoção, uma vez que fosse, como uma paixão avassaladora, um vício alucinante, um coração em disparada, algo que me arrebatasse e terminasse com este marasmo que me persegue desde jovem.
O outro o olhou demoradamente e perguntou:
— Não tem família?
— Praticamente não. Divorciado, e meus filhos, é como se não os tivesse.
— Então você seria capaz de fazer qualquer coisa para sentir uma emoção intensa?
— Sim.
O sino da capela tocou.
Ao mesmo tempo, olharam seus relógios e dirigiram-se ao cortejo que acompanhava o corpo de Fausto. Lacerda foi abrindo caminho entre as pessoas, em direção ao caixão que era colocado no chão para a última olhada. O sujeito deve ter sido muito querido, pensou ele com uma certa inveja. Foi o último a se aproximar. Ao olhar para dentro, reconheceu o perfume nauseante que vinha dos gerânios e prímulas que circundavam o corpo. Primeiro um rubor subiu-lhe a face, seguido de uma palidez. O coração acelerou, e foi tomado de grande emoção. Só ouviu as passadas de um sapato de sola se afastando e seus dedos tocaram o cetim que envolvia a tampa por dentro.
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