Rosane Rommel Cardoso
Chego a Sevilha de trem, vinda de Madrid. Deixo minha mala no hotel e saio. Apesar da diferença de idade, eu e esta senhora andaluza nos damos muito bem desde a primeira vez que aqui estive. Faz dois anos. Sevilha ainda gira sob as suas saias coloridas e movimenta seu corpo na sensualidade do flamenco. A cidade cheira a laranjeiras.
Caminho pelas ruas, sento-me em cafés, provo da culinária local e folheio livros ao acaso numa feira. Olho a contracapa de A Vendedora de Sevilha e vejo a foto da autora, mas não há biografia e nenhum indicativo da história, o que me faz deixá-lo de lado. Sempre, em viagens, penso em comprar livros e depois desisto pelas questões práticas. Não me anima passar um dia inteiro carregando um peso embaixo do braço e depois na bagagem, sem falar no valor em euros. Apesar disso, eu faço a afirmação nada verdadeira: “no fim do dia, eu passo e pego”. Em todas as vezes anteriores, eu cheguei em casa arrependida e de mãos vazias. Desta vez acontece um pouco diferente.
No último dia, com o cansaço já queimando as solas dos pés, estou pronta para retornar ao hotel e descansar para a viagem a Barcelona. Como meu costume, que já foi causa de muitos transtornos, não volto pelas mesmas ruas que fui e vou entrando e saindo por ruelas desconhecidas. Encontro-me em frente a uma dessas casas seculares com um grande portão. Casas antigas são sempre um achado para uma aprendiz de escritora com um pé no passado. Fico imaginando as histórias como fotografias expostas nas paredes.
Perdida em divagações, não noto uma senhora muito velha sentar-se em frente ao portão. Ela diz:
— Aproxima-te!
Com suavidade, ela toca e olha o meu rosto. Fico um pouco constrangida pela minha indiscrição de ter olhado portão adentro.
— Desculpe-me se fui inoportuna, mas estava admirando a arquitetura. Tenho um gosto por casas antigas.
— Eu sei — ela diz —, o exterior pouco ou nada nos diz do interior, assim como as pessoas. Podes entrar e olhar à vontade, a casa é sua!
Frente à minha hesitação pela oferta inusitada, ela me fala que não pode me acompanhar, pois está a vender. Como não vejo mercadoria alguma, pergunto:
— O que a senhora vende?
— Passados.
— Como se vendem passados?
— Veja com seus olhos.
— É um museu… Preciso de ingresso?
Ela nega com a cabeça e faz um gesto para que eu entre. Com a curiosidade mais aguçada que a prudência, entro no pátio e vou invadindo a casa, tomada de admiração e susto. Ouço um arfar e dou-me conta que vem de mim. Ao ultrapassar uma porta, alguém vem em minha direção, e sinto uma dor penetrante no ventre. E vejo-me sozinha, sentada em uma poltrona e não lembro do que aconteceu entre a dor e este momento. Volto rapidamente para a saída. A velha agora porta óculos escuros.
— O que aconteceu aqui?
Ela responde:
Hay gente con una mancha blanca
en la pupila.
Muchos sienten,
como un grano de arena en el ojo.
Pocos miran,
como una puerta
a ser abierta.
Despeço-me apressada e saio, não sem antes olhar para trás, onde não havia mais ninguém. Um pouco assustada, fujo aos meus costumes e retorno pelo mesmo caminho da ida, passando pela feira do início da tarde, já em desmonte. Pergunto à vendedora da banca:
— Por favor, eu gostaria de levar o livro A Vendedora de Sevilha.
Lembrei de onde tinha visto o rosto da velha.
— Não temos nenhum título com este nome. Não conheço. Qual o autor ou editora?
Faço um esforço em vão para lembrar.
— Eu estive aqui mais cedo e cheguei a pegá-lo.
— Sinto muito! Quem sabe foi noutra banca — ela diz, vendo a minha perturbação.
— Não entendo! — falo ainda tomada de perplexidade.
Sem respostas, não consigo sair de mãos vazias e pergunto por autoras que me veem à cabeça.
— E de poesia vocês têm algum? Ana Peréz Cañamares, Raquel Lanseros ou Pilar Adón?
Quando a atendente vai me entregar o livro de Pilar, aponta minha camiseta branca. Há uma mancha vermelha na região do ventre.
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