A quarta dose


Cris Netto

A maior privação do Covid é a falta de demonstrações de afeto. No mundo pré Covid, costumávamos brincar que o presente para o aniversariante era um beijo e um abraço. Nunca poderíamos imaginar que esses dois gestos de carinho seriam banidos das confraternizações. Criativos como somos, avós vestiram capas de chuva para abraçarem os netos. Professores inventaram os jalecos do abraço. Cumprimentos de pé, coração feito com os dedos, abraços solitários. Conseguimos demonstrar afeto, mesmo respeitando o distanciamento. Passados quase dois anos dessas estratégias, cansamos. Esquecemos os protocolos, relaxamos, confiamos na imunidade da vacina, ignorando que o vírus também é criativo e se modificou para continuar entre nós. Novo ano, nova variante, mesmo distanciamento, tão cruel e tão necessário. Sem dúvida, a maior dor é a de perder um parente, um amigo, um colega para o vírus. Mas não podemos relativizar a dor de não termos mais o abraço que acolhe, o beijo que aquece, o carinho que acalma. Tenho medo que, ao passar essa pandemia, tenhamos normalizado o distanciamento e as pessoas já não mais sintam a necessidade de tocarem-se. A ciência cria medicamentos e vacinas, mas quem cura a falta de afeto? Não deixei de amar ninguém por não poder abraçar, mas sempre quando estou em grupo, uma nuvem preta paira sobre mim e o Diabinho e o Anjinho travam disputas homéricas na minha consciência. O Anjinho diz que estou vacinada e posso abraçar. O Diabo diz que se fizer isso, poderei estar transmitindo sem saber. Dessa vez não há maldade no conselho diabólico. É a razão versus a emoção. E nessa disputa, invariavelmente quem perde sou eu, seja pela ausência que a sensatez traz ou pela culpa que a emoção carrega. Sigo em frente, na esperança de uma quarta dose, dessa vez, por favor, com reforço de amor, pois com tanto tempo de isolamento, nossos estoques de bem querer estão se esgotando.

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Cris Netto

E-mail: cristiane.snetto@gmail.com

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