#quem não sabe brincar não desce pro Play


Ana Helena Reis

Ordem do dia
A convocação no elevador já prenunciava uma noitada das piores:
Pelo presente, ficam os senhores condôminos convocados para a Assembleia Geral Ordinária a se realizar na próxima segunda-feira, a fim de deliberarem sobre a seguinte ordem do dia:
1º Prestação de Contas do período
2º Melhoramentos realizados durante a gestão: troca dos bebedouros, replantio da grama e compra de novos capachos para os elevadores.
Na sequência mais 12 assuntos sem importância que durariam aproximadamente duas horas de discussões irrelevantes até chegar no tema principal da convocação.
Creio que essa é a única reunião a que todos os condôminos fazem questão de comparecer, pois é quase equivalente a um sorteio de bilhete para o paraíso – ou no inferno, dependendo do resultado do sorteio,

E assim foi. A reunião transcorria morosamente, como previsto. Os presentes começaram a se revirar nas cadeiras bastante desconfortáveis, diga-se de passagem, e o pavio da paciência geral foi encurtando, até que, finalmente, foi anunciado: 13º tema- Sorteio anual de vagas de garagem. Aí o circo pegou fogo.
A forma de sorteio já havia sido escolhida e era pelo número do apartamento: cada apartamento sorteado na sequência escolheria a vaga de sua preferência no mapa em cima da mesa, em frente ao síndico e administradora e assim por diante.

Dia do grito
Antes de dar início ao sorteio, uma senhora levantou uma questão de ordem: relatou que, por ter um problema crônico de coluna que a impede de fazer alguns movimentos com os quadris para se sentar, entrar e sair do carro, deveria poder escolher primeiro a vaga que melhor pudesse atende-la – que fosse espaçosa o suficiente para abrir completamente a porta, sem encostar no carro vizinho ou em alguma coluna.
Um burburinho entre os presentes já sinalizou problemas. Um senhor pediu a palavra.
— Minha senhora, com todo o respeito, esse motivo não justifica passar na frente dos outros condôminos no sorteio, pois eu, por exemplo, tenho dificuldade para enxergar, portanto também mereço uma vaga perto do meu elevador para evitar tropeções nos outros carros.
Nesse momento, a moradora do 2º andar se levantou, já exaltada:
— Nada disso! Tenho três crianças pequenas que chegam cansadas e já dormindo no carro; eu, que como vocês sabem perdi o marido, não tenho como carrega-las se estiver muito longe do elevador do meu bloco. Se é para falar em prioridades, eu teria que ser a primeira a escolher, porque ninguém aqui está na minha situação.
Um dos moradores que não tinha carro, alugava sua vaga para outro condômino, tentou mediar:
— Amigos, se for assim todos tem suas prioridades e motivos para a escolha da vaga sem sorteio. Temos que respeitar a convenção do condomínio – sorteio é sorteio e vale para todos.
No que foi contestado aos gritos pela encrenqueira de plantão, que morava na cobertura:
— Você diz isso porque aluga a sua vaga, assim é fácil! Agora imagine eu, que tenho mais vagas que todos, se tem cabimento não ter o direito de escolher primeiro – cobertura também é prioridade meus caros.
Prenúncio de motim a bordo.

Grito de ordem
Síndico e administradora se entreolharam e pediram um intervalo para deliberar, sugerindo que todos tomassem o cafezinho, servido ao fundo do salão.
Saíram os dois um pouco da sala para confabular. Lá em frente ao buffet o tumulto crescia; a troca de grosserias em minutos estava evoluindo para xingamentos e aí a situação poderia ficar incontrolável.
Os dois acharam por bem se apressar, mesmo porque a decisão já estava tomada. Pediram para que todos se sentassem e o síndico tomou a palavra:
— Caros condôminos. Somos uma grande comunidade, e é impossível atender a todos. Pelos poderes que a convenção de condomínio concede ao síndico e com o parecer da administradora fica decidido que haverá um sorteio duplo: usaremos um software de sorteio aleatório, que será rodado no computador e projetado nas telas, visível a todos. Na tela da esquerda teremos os números dos apartamentos e na da direita o número das vagas. O mapa das vagas vocês já tem em mãos. Eu sortearei o apartamento e a representante da administradora, aqui presente, em seguida sorteará qual a vaga destinada a esse apartamento. Vamos então dar início à votação, peço silêncio por favor.
Imediatamente, um grupinho que já havia se articulado lá no fundo deu um pulo e se pronunciou em bloco:
— Somos totalmente contra! Sorteio eletrônico não aceitaremos de forma alguma. Com todo o respeito, não é confiável. Queremos a volta da urna e sorteio com papel.

Moral do dia
Com a paciência esgotada, aqueles de boa vontade que tinham descido dispostos a aceitar as regras do jogo jogaram a toalha – debandaram, mas não sem antes deixar um recado aos inconformados, que continuavam em debate: Quem não sabe brincar não desce pro Play!

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