Relatos de uma peregrina


Ana Helena Reis

Pensar em fazer o Caminho de Santiago envolveu a disposição de enfrentar vários desafios e foi com esse espírito que encarei minha peregrinação a pé e sozinha. Só não esperava encontrar tantos motivos para rir de mim mesma. Selecionei somente algumas poucas passagens que, acredito, possam ilustrar o lado divertido dessa experiência.

A primeira já começou antes da partida. Tinha que me preparar para caminhar com uma mochila pesada nas costas. Comecei a treinar longas caminhadas em São Paulo, com a mochila cheia de livros para dar o peso necessário. A diversão já começou aí; as pessoas me olhavam confusas: “—O que faz essa senhora de cabelos brancos andando com uma mochila de viajante em plena cidade? Será que traz aí a sua casa, mora na rua? Não, parece que não. Veio de algum lugar e está procurando um abrigo? Também não parece... é só excêntrica?” Como essa era a resposta mais confortável, pois não exigiria nenhuma ação de acolhimento, foi o que percebi que a maioria dos que passavam pensaram.

Compor a mochila real foi um parto. Como me limitar a poucas peças, eu que sempre viajei com malas grandes? Depois de várias tentativas cheguei a um kit básico que cabia nos limites de peso que estabeleci. Mas, na véspera da viagem, a previsão do tempo no percurso mostrou uma grande variação e tive que acrescentar roupas para enfrentar também o frio, o que não estava previsto. O peso final passou bastante do meu limite, mas como cabia na mochila pensei  acho que aguento. E lá fui eu, com uma passagem sem bagagem para despachar.

Fiz reservas em pequenas pousadas, casas rurais e hostals. Ao chegar a pé na primeira pousada e me apresentar na recepção, a moça, muito gentil, me olhou de ponta a ponta com aquela mochila e perguntou – “A senhora não gostaria de despachar a sua bagagem? Acho que está um pouco pesada...” Sensação de que fui pega em flagrante, já dando um fora de início. Se eu soubesse desse suporte não teria que ter feito todo o esforço anterior... mais que depressa dividi aquilo que certamente não iria precisar e fui com a mochila contendo somente o essencial.

De lá parti para o primeiro percurso longo, que terminaria em uma casa rural onde passaria a noite. Um Rectoral, antigo mosteiro restaurado, cujos donos eram um casal relativamente novo. Conversa encantadora, comida maravilhosa, e uma atmosfera cheia de significados que aquelas enormes paredes de pedra abrigaram por séculos. Na conversa com eles, pedi orientação para a próxima etapa do meu caminho, comentando que não queria fazer o percurso oficial dos peregrinos, preferia percorrer meu próprio caminho. Os dois, muito impressionados, me sugeriram então subir ao alto das montanhas para andar junto aos moinhos de vento; se entreolharam e me saíram com essa: “ A Sra segue seu caminho não como os carneiros, mas como as cabras”. Agradeci segurando o riso, na dúvida se isso era um elogio.

E foi assim que percorri o meu caminho pelas montanhas e moinhos, me sentido a própria Don Quixote montada em uma cabra Rocinante, maravilhada com tudo o que via e pronta para encarar com humor as outras peripécias que se seguiram.

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