Torturante band-aid


Ana Helena Reis

Toda vez que alguma coisa me incomoda lembro da música São dois pra lá dois pra cá, de João Bosco e Aldir Blanc, cantada magistralmente por Elis Regina.
Acho que não existe coisa pior do que sentir a presença de alguma coisa que não deveria dar sinal de vida, como um band-aid no calcanhar. Sua função é proteger um machucado, torná-lo imperceptível, mas ele cisma em sair do lugar para nos torturar.
Mas esse não é um caso isolado; minha lista de “torturantes” é extensa.
Começa com a etiqueta de tecido sintético costurada nas roupas ou a linha de nylon usada para costura-la. Hoje em dia as grifes insistem em mostrar sua identidade até nas lingeries! Uma coisa que parece tão inócua como um pedacinho de pano tem o efeito de uma caixa de pregos usada na antiguidade punir infratores - é capaz de provocar um cutucãozinho a todo o momento no pescoço, nas costas ou logo abaixo do braço, o que vai me levando à loucura e ao impulso de arrancá-la a qualquer custo. No desespero, uso o que estiver ao meu alcance: uma tesoura, uma faca, qualquer coisa pontuda e, invariavelmente, acabo fazendo um furinho no tecido de difícil remendo.
O grande problema desses “torturantes” é que o desespero para se ver livre deles nos leva soluções que acabam piorando o problema. É o que acontece, por exemplo, quando a cutícula solta uma pelezinha que fica saliente. Um alicate resolveria o problema, mas normalmente isso acontece quando ele não está à disposição. Aí ela fica roçando em tudo, e aquele dedo se torna onipresente, chegando à frente a qualquer movimento da mão. É uma pontada aguda que vai crescendo até que essa criatura se enerva e resolve eliminá-la puxando a pele solta – só piora a situação e aí cresce uma ferida aberta, que só sossega com o tal band-aid.
Da cutícula vamos para a tentativa de ir a uma festa usando um brinco que ganhou de presente, mas que não é de ouro sabendo que é alérgica a outros metais. Insiste. Não precisa mais do que meia hora para que a orelha comece a inflamar, latejar, uma guerrilha ali preparada para minar o programa de quem ousou provar novamente o fruto que já sabia ser proibido. Tortura pra mais de hora, resistindo para não arrancar tudo de uma vez e estragar o visual.
E por falar em proibido, a cozinha é um palco ideal para os “torturantes”. Deixar escapar a faca e abrir aquele corte fininho que nem sangra quase, mas fica ali aberto e arde cada vez que se mexe na água, é dia sim, dia não. Como se já não bastasse, o momento de testar o ponto do bolo no forno enfiando um palito é uma tentação para alguém apressada e otimista: – “Vai sem luvas mesmo porque é rapido, tenho prática”. E aí aquela encostadinha fatal das costas da mão na chapa quente, castigo do diabo. O vergão fica emitindo aquela onda de dor por dias; isso se a queimadura for de leve, claro, porque se formar bolhas a coisa se prolonga por séculos.
Engatando na bolha, voltamos ao tema da música. Aquele sapato que é lindo, mas faz um estrago no calcanhar e já devia ter sido descartado, tortura o dois pra lá, dois pra cá. O band-aid é o paliativo mais indicado, mas porque será que ele nunca para no lugar, e a cada passada uma fisgada? Deve ser para lembrar que a vaidade não é recompensada, só pode ser!
Não sei qual desses “torturantes” me incomoda mais, mas pensando bem, acho que a etiqueta nas roupas ganha. Assim, mudaria a estrofe da música para:

No dedo, um falso brilhante
Brincos iguais ao colar
E a ponta de uma torturante
Etiqueta no peignoir

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