O Ponto-1930


Ana Helena Reis

Coberto com um pano preto, fiquei hibernado, de acordo com minhas contas, por quase 100 anos. Agora, pelas movimentações, o vira pra cá, vira pra lá e por uma brisa que finalmente consigo sentir, acredito que que vão me colocar perto de uma janela. Isso significa liberdade, finalmente!

À época do confinamento, estava comigo um grupo de passageiros, à espera dos ônibus da CMTC. Assim que possível vou reencontrá-los, pois devem estar procurando por mim, congelados também durante décadas.

Me lembro perfeitamente de onde eu ficava - esquina da Rua Avaré com Praça Agnon, no bairro do Pacaembu em São Paulo. Os ônibus diminuíam a marcha, encostavam no meio fio e abriam as portas dianteiras, bem na minha frente. Um a um, sem empurra-empurra, entravam os passageiros.

Naquele dia, lá parou o ônibus 5318- Anhangabaú levando as duas senhoras ao centro. Iam fazer compras e tomar chá na Casa Mappin, da Rua XV de Novembro. Graciosas, elas se postavam em fila, sempre acompanhadas do esposo da mais velha delas. Engravatado, portanto um chapéu preto Fedora de lã, com a barba aparada, de óculos redondos com aro de ouro, ele colocava um braço protetor ao redor das moças, para que nenhum aventureiro se aproximasse.

A fila era organizada, e todos respeitavam a ordem de chegada. As crianças, devidamente uniformizadas com calças curtas, pois calças compridas eram usadas somente por adultos, ficavam à frente. Para meu calvário, isso significava estar bem ao meu lado. Traquinas, me infernizavam, rodopiando com uma das mãos na minha cintura, o que me deixava um pouco tonto. Estavam sempre acompanhadas das irmãs franciscanas que, com seus hábitos pretos, esperavam o 8045- Sé, para leva-las à catequese. Terços na mão, as freirinhas rezavam a novena enquanto aguardavam.

No geral, a conversa era animada, mas em voz baixa. O traço destoante era de um gazeteiro contumaz, que lia alto o periódico Diário Popular, propagando as últimas notícias do dia.
Um grupo de trabalhadores do comércio se aglomerava na calçada, um pouco mais atrás. Pegavam o 152 para a Consolação, ou o 5631 para o Largo de São Francisco, preocupados em assumir o balcão de lojas como a Doural, a Casa Godinho e a Niazi Chohfi. Queriam chegar antes da abertura para poder preparar a mercadoria a contento, e se apresentar para a freguesia com um cordial sorriso.

Mais para o final da fila, as mulheres que seguiam para os trabalhos domésticos na casa das famílias abastadas, moradoras da Av São Luiz. Tagarelando sobre a vida da família a que serviam, tomavam o 7228 e desciam na Praça Ramos. Aproveitavam o momento para flertar com o jovem policial de farda cinza e quepe meio caído de lado, que assiduamente pegava o ônibus no mesmo horário que elas.

Não sei quando resolveram me substituir, e me aprisionaram como memória nesse quadro, jogado no porão. Hoje, resgatado e colocado perto da janela, avisto o lugar que, por direito, é meu.
No próximo capítulo, vou retomar o meu posto, aguardem!


Obs: o quadro de inspiração é uma caricatura feita por meu avô. Está pendurada no meu escritório, como uma boa lembrança de seu humor como retratista.

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