Desabraço


Ana Helena Reis

Houve um tempo em que os abraços eram tantos que Margô já não sabia quando terminava um e começava o outro.
Era abraçada logo ao acordar para um bom dia, e era um abraço de desejo, que ia se prolongando e nem precisava abrir os olhos; logo sentia o corpo quente dele e tudo se incendiava, como aquela fresta de luz do sol que entrava pela vidraça.
O abraço após o café da manhã era rápido e apertado - não podia dar espaço para um segundo ato- uma saideira custaria atraso no trabalho. Depois da despedida, Margô se sentava na mesa da cozinha olhando para as migalhas de pão que restaram no prato, o fundinho da xícara de café preto, o pote de geleia que ele esquecera de colocar a tampa, e sentia um calor gostoso tomar conta do corpo e invadir seus pensamentos.
Tinha o abraço da chegada ao final do dia. Nem o corpo suado, a cara cansada e a ruga entre os olhos arrefeciam o frisson que o contato de seus corpos provocava em Margô. E ele mal tinha tempo de jogar a pasta de trabalho no chão antes de tombar com ela no sofá da sala.
Aos sábados o abraço do passeio a pé na praça era de carinho, de cumplicidade. Sentia seu braço em torno dos ombros e se aconchegava a ele; passos sincronizados, eles se tornavam dois em um.
E nas saídas à noite, nos barzinhos, cadeiras e pernas coladas, a mão do abraço descendo ao sabor de uma boa caipirinha acompanhava as risadas e beijos ardentes.

E veio um tempo em que, pela manhã, os olhos de Margô se abriam como que por encanto; rolava de lado para não acordá-lo e lá se ia. Por um segundo pensava em voltar e se aninhar àquele corpo, mas não, não dava mais.
O café da manhã deixou de ter aquele gostinho de pão na chapa, que eles dividiam; já não havia mais toalha xadrez na mesa, e quem fazia o café agora era uma máquina para ir mais rápido. Só havia espaço para o abraço pelas costas e um beijo de despedida jogado pela ponta dos dedos.
O final do dia continuou sendo o momento mais esperado por Margô. Bastava ele abrir a porta para que ela se precipitasse para pegar a pasta, pois ele precisava estar com as mãos livres. Um beijo no rosto, mudava de turno com um suspiro de alívio e corria para o banho, que ainda não tinha conseguido tomar. Em seguida se jogava na cama, inerte.
Os passeios de sábado aconteciam, mas agora eram ele de bike - precisava se exercitar; ela a passo lento- precisava descansar. O barzinho à noite foi sendo adiado para o próximo final de semana, se desse.

E assim, com o tempo, os abraços foram encurtando de tamanho, de aperto, de acontecer.
Margô nem notou... só tinha olhos para seus bebês.

deixe um recado | voltar

E-mail:

Pageviews desde agosto de 2020:

Site desenvolvido pela Plataforma Online de Formação de Escritores