Laço de lã


Soraya Jordão

Eu sempre sonhei com os cabelos castanhos da Gabriela. Não me roubava os olhos, o louro liso da Fabiane, tão cobiçado pelo restante da turma e sempre equiparado aos raios de sol. Não, para mim o encanto dependurava-se nos cabelos da Gabriela. Aliás, só o meu encanto conseguia se agarrar ali. Ela não usava fita ou presilha, apenas deixava-os ser o que eram. Desciam até seus ombros feito cascata de chocolate ao leite. Por alguma razão desconhecida das leis da estética, seu rosto angular, pálido e seus cílios grandes comportavam-se como um quadro emoldurado pela tal cascata.
Todos os dias eu a via chegar daquele seu jeito, tão naturalmente ela que me arrancava os mais deliciosos casadinhos de inveja e admiração. Não trazia consigo nenhum acessório extra. Sem brincos, colares, anéis ou pulseiras. Apenas ela, totalmente despida de refúgios. Andava como se a qualquer momento fosse correr. Ria sempre por descuido. Vagava dançante entre os grupos. Nada podia lhe apreender.
A blusa encardida do uniforme, a saia descosturada na ponta e a mochila com zíper quebrado pareciam gritar a falta de importância das pequenas coisas. Eu, da minha carteira, questionava o valor da brancura do meu uniforme se o cabelo era feito de cachos que brigavam entre si pelo desejo de ser juba, incapazes de escorrer em qualquer direção.
Ainda que me castigasse o azar de não ser ela, sobrava a distração fortuita de observá-la em cada detalhe. Gostava de adivinhar se chegaria de cabelo molhado, se havia mudado o xampu, se penteava com escova ou pente. Vivia a calcular a textura e o comprimento das suas madeixas, até que um dia posicionada atrás dela na fila para o recreio, toquei seu cabelo.
Em minha mão estava a cascata de chocolate feita de fios grossos. Antes que eu pudesse roçá-los, sua inquietude tratou de roubá-los de mim. No segundo seguinte, já não estavam em meu poder. Ao longo dos meses lembrei e relembrei, em todos os ponteiros da hora, a sensação ora aflitiva ora saciada do chocolate derretido na ponta dos dedos. Ainda me entretinha com esse brinquedo quando fui sugada por sua voz a me indagar sobre a cor mais bonita das fitas de lã que Fabiane estava vendendo para usar no rabo de cavalo. Da minha boca não saiu nenhuma cor:
─ Você vai prender seu cabelo?
─ Vamos. Compra também para ficar igual.
Num impulso que jamais experimentei, falei com Fabiane:
─ Queremos uma de cada cor. Eu pago tudo amanhã com o dinheiro da merenda.
Sentada na escada do colégio, recebi a primeira e única missão:
─ Amanhã nós duas chegaremos de rabo de cavalo usando a amarela.
Guardei minhas fitas na mochila como se guarda um filho. Pensei em falar sobre os riscos do zíper quebrado da mochila dela, mas acreditei na nossa sorte.
Entrei no carro da minha mãe e ainda me sentia feliz como nunca havia sido. Eu e Gabriela seríamos iguais. Olhava pelo vidro e no lugar da paisagem surgiam todas as expressões de surpresa que eu podia inventar para cada rosto da turma. Estava tão viva nesse universo só nosso que não estranhei o caminho. Só quando desci do carro na porta do salão, entendi o risco. Implorei para não entrar, contei sobre os planos do rabo de cavalo, sobre a moda do momento na escola, sobre pertencer ao grupo das meninas populares. Minha mãe apenas disse:
─ Cortaremos pouco. É época de piolho.
─ Mãe, só as pontas.
No espelho, vi um rosto desfigurado de sonhos. Passei a mão na nuca e ali morava o vazio de todas as coisas. Lágrimas de ferro caíram no chão.
No dia seguinte, os olhos arregalados de Gabriela ao me ver descer do carro sem a fita de lã amarela denunciaram o rompimento do nosso laço. Nunca mais seríamos iguais. Nunca mais.
De eterno apenas o som das risadas de deboche da turma, o apelido de Joãozinho e a lembrança do dia que me senti igual.
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