Picolé de uva


Soraya Jordão

No começo parecia natural vê-lo chegar do trabalho e preparar sua dose habitual de alegria. Eram duas pedras de gelo, uma medida de uísque e dois dedos de prosa. Reclamava do chefe, da pressão no trabalho, da falta de sorte e, por fim, tomava banho e dormia abraçado ao nosso mundo.
Depois de um tempo passou a chegar mais tarde, já calibrado pelas cervejas do bar da esquina. Bebia pelo menos mais duas doses de uísque, reclamava do som da tv, da bagunça dos meninos, jogava sua roupa no chão e caía na cama.
Tentei contornar como pude. Mudei a cristaleira de lugar, passei a botar as crianças para deitar mais cedo e me vestia de paciência.
Naquela época, eu ainda acreditava que era apenas uma fase difícil, afinal a promoção tão esperada não tinha acontecido.
Em pouco tempo, começou a chegar com passos tão incertos quanto o nosso dia de amanhã. Resmungava insatisfações, rejeitava o jantar, gritava querendo a garrafa escondida, enquanto eu trêmula tentava colocá-lo na cama.
Os dias foram agonizando, as noites se calando e eu seguia buscando forças nos sonhos de antes.
O girar da chave na fechadura acontecia cada vez mais tarde e vinha acompanhado de um pavor que só lembro de sentir quando via meu pai chegar em casa etilicamente agressivo.
Nos fins de semana, cabia a mim jogar bola com os meninos, ler histórias para dormir e inventar desculpas para os longos sumiços.
Feito homem apaixonado pela amante mais nova, ele sempre arrumava um jeito de fugir para encontrar sua amada na mesa do bar.
Não sei dizer quantas vezes botei o almoço ao meio dia e só comi às cinco da tarde na esperança de almoçarmos em família.
Seguidas vezes precisei justificar as faltas dele nas festinhas infantis, nos aniversários de família, até que desistiram de perguntar por ele e começaram a perguntar sobre mim:
— Tudo bem com você?
— Estou te achando muito magra.
— você está abatida, de olheiras.
Fui me isolando, criando mentiras para não encarar a verdade que me tragava pouco a pouco.
No fundo, eu só queria salvar a rotina dos nossos planos. De tudo eu fiz: Limpei vômito, resgatei nos botecos, briguei, desesperei, perdoei, dormi abraçada àquele hálito cetônico, marquei médico, ofereci ajuda, implorei por nós. Tudo em vão.
Não demorou para vir o desemprego, os porres diurnos e o sumiço das coisas de valor.
Tudo eu pude suportar, acreditando ser responsável pela salvação do amor da minha vida. Nada parecia me vencer, até entrar no quarto e ver os meninos encolhidos debaixo da escrivaninha. Nos olhos arregalados de horror, a estampa do fracasso de todas as minhas tentativas.
Volta no pensamento, minha mãe em prantos me tirando de trás do sofá. Seu colo gasto de sofrimento e na voz a promessa de felicidade na casa da vovó. Lembro de sentir um gosto forte de picolé de uva.
Sua coragem me invadiu como ventania de rompante.
Pego a bolsa, as crianças, fecho a porta, seco às lágrimas e prometo um picolé para cada um na casa da vovó.


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