Domingo não é dia. É afeto


Soraya Jordão

Era domingo. Talvez fosse mais um domingo para toda gente. Para mim era um dia raro, tão raro que trazia consigo um cortejo de insônia. Depois de dois anos eu voltaria a sentar em sua corcunda para ver o mundo girar lentamente até tontear.
Ainda não tinha decidido se iria cobrá-lo pelos 770 dias de atraso para voltar do trabalho. Talvez não fizesse mais sentido. Agora todas essas horas amontoadas num bolo solado de lágrimas tinha perdido seu gosto. Eu só queria estar com ele.
Estava pronta. Nas costas levava a mochila para passeio de um dia. Na cabeça as advertências da minha avó e a lista de defeitos do meu pai ditada exaustivamente pela minha mãe. Tudo decorado igual matemática: sem fazer sentido e sem aplicação na vida prática. Na memória pulsando feito dedo inflamado as brincadeiras de luta, o passeio em cima dos seus pés, a bicicleta Monark azul e o inesquecível trono de corcunda.
Esperei tanto por sua chegada que só tenho lembrança de recobrar a consciência quando seus braços fortes me levantavam no ar para pular a roleta. Ali, bem no alto voltei a mim em forma de gargalhada.
Sentamos no banco logo depois do cobrador. Eu na janela para ver as cores do mundo como ele me explicou. Por mim passavam em alta velocidade as árvores, os prédios, os sinais, as ruas, os pontos de ônibus, as pessoas. Só quando eu olhava para o sinal que ele tinha no pescoço que o tempo cansava de correr.
Chegamos no parque de madeira e chão de areia. Sentada no balanço, como se nunca tivesse me abandonado, me avisou para segurar firme. Eu voaria tão alto que veria o mundo todo de uma só vez, prometeu ele.
Lá de cima podia contemplá-lo de braços abertos a me aguardar. Me aproximava, ele me recebia, me relançava. Voltava e ele estava ali.
Mal sabia ele que todas as cores do universo viviam no sinal do seu pescoço.

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