Visita do passado


Soraya Jordão

Qual não foi minha surpresa ao vê-la ali sentada em minha cama segurando meu amado travesseiro em seu colo como se fosse seu tesouro. O ciúme me cegou, aliás me ensurdeceu um pouco mais também. Só depois de uns minutos meus ouvidos captaram um barulho suave de asas batendo e pude sentir um ventinho leve arejando o quarto. Nesse instante, desci os óculos, que tenho mania de deixar na cabeça, e pude ver suas delicadas asas.
Meu primeiro impulso foi pegar no tranco meu parceiro de sonhos e de cama há mais de trinta anos e expulsá-la dali. Não pude. Tinha feitiço aquela poeira de estrelas desenhando seu vulto. Brilhavam cor de prata, explodiam lilás e voltavam a nascer prata. Se fosse só por isso, talvez tivesse conseguido reagir de alguma forma. Mas as borboletas minúsculas que dançavam em volta do seu cabelo ruivo e aquele beija-flor azul, da cor da noite sem luar, pendurado na pontinha de sua trança, me fizeram refém. Vi suas mãos pequenas de dedinhos ágeis guardando algo dentro da fronha. Era uma estranha muito familiar. De onde vinha essa intimidade? Talvez já a tivesse visto por aí. Vai saber. Depois dos setenta tudo deixa de ser certeza. Dei mais dois passos, arrastados pela idade, e perguntei:
─ Algum problema?
Seus olhos, de um dourado intenso, chegaram até os meus sem pressa. Seu piscar mais parecia o abrir de janelas numa manhã de sol. Voei como pipa sem rabiola. Solta no vento. Aos poucos fui descendo. Quando dei por mim estava no meu quarto da infância.
Os olhos arregalados, a mão estendida na direção da minha mãe e nela um pequeno dentinho.
Antes que a cena se desenrolasse, volta à minha cabeça as palavras nunca esquecidas:
─ Não precisa ficar triste. Vamos colocar debaixo do travesseiro e a noite a fada do dente virá buscar. Vai levar seu dentinho e deixar um dinheirinho.
Minha mãe e suas palavras de algodão doce. Já sem medo, subo no seu colo e pergunto:
─ Mãe, ela vai voltar sempre que cair um dente? Por que ela gosta tanto de dente?
Feito pipa voada e aparada sou puxada de volta para o quarto da minha velhice.
Ela ainda está sentada, segurando meu travesseiro. Ajeita-o na cama. Se levanta. Fita meus olhos como se eles também fossem brilhantes. Abre um sorriso incompleto pela falta de alguns dentes. Retribuo com a mesmíssima incompletude.
─ Vim fazer a troca. Os da infância não me servem mais – disse-me ela.
Voa feito borboleta e sai pela janela do meu quarto.
Volta na minha mente a resposta de minha mãe:
─ Ela gosta de crianças e velhinhos.
Minha mãe e suas palavras de algodão doce.

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