A dor de não saber


Soraya Jordão

Eu não sei dizer como ele chegou, como conquistou território, impôs sua linguagem e doutrinou nossa cultura. Só sei que nos colonizou, fez da nossa casa seu império, e, para que não restassem dúvidas, demarcou as fronteiras com os pelos que espalhava por toda parte. Tinha vida e postura de Rei e nós éramos todos seus súditos. Dependendo do seu humor, um ou outro era escolhido para desfrutar da sua companhia.
De minha parte, lembro de tardes infindas de cama, cobertor, televisão e aconchego. Ele do meu lado, esticado nobremente, com as patinhas que se emparelhavam com rigor estético, enquanto eu assistia minha série e ofertava cafunés e cheirinho na orelha. Algumas vezes, mais simpático, ficava de barriga para cima com as patinhas abertas como se esperasse um abraço, aí era hora de acariciar sua barriga. Quando queria atenção, me escalava até o pescoço e oferecia aquelas lambidas molhadas mesmo sabendo que eu não gostava nem um pouco. Vivíamos tão colados. Ouso dizer que eu era sua preferida. Contudo, não se enganem como me enganei, todo esse grude não o impedia de partir sem nenhum aviso prévio. Era como se só pudesse suportar uma dose homeopática de amor, qualquer demonstração maior era muito. Partia sem rastro nem remorso. Horas depois, voltava como se nunca tivesse ido.
Se pelo menos naquele dia ele tivesse dado algum sinal dos seus planos, eu teria me despedido à altura de sua importância. Ele se foi com aquele descaso que lhe era peculiar, só não mais voltou. Perdi as contas dos caminhos que fiz e refiz em busca de uma pista do seu paradeiro ou de algo para justificar sua decisão de fugir. Por fim, acabei por me convencer: Ele foi embora para viver o mundo e me descartou como um chiclete sem gosto. Era um ingrato. Segui em frente, embora ainda sonhe com o dia que ele, moribundo, voltará com aqueles seus olhos de pincel capaz de colorir qualquer lugar.
Desde o dia da sua fuga nunca mais falamos do Eusébio. Foi enterrado em nossos assuntos. Pra falar a verdade, acho que ninguém o perdoou.
Olho pra minha mãe sentada na sala, rindo enquanto desliza o dedo pelo celular, e lanço sem dó: “mãe, você ainda tem esperança que um dia Eusébio encontre o caminho de volta?”.
— Já faz muito tempo. — Vamos adotar outro filhote?
— Não, mãe. E se ele decide voltar um dia?
—Isso não vai acontecer, Amanda.
— Por que você tem tanta certeza? Pode ser que um dia ele me perdoe.
— Você não tem culpa do sumiço dele, filha.
— Não sei.
— Eu sei! — afirma minha mãe, deixando o celular de lado, me puxando para o sofá, colocando minha mão dentro das mãos dela e me olhando por dentro. — Não te falei a verdade para não te traumatizar. Eusébio não fugiu. Ele morreu. Pensei em contar depois de um tempo e acabei deixando passar. Achei que você já tivesse esquecido.






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