Sorriso


Leney Veloso

São poucas as coisas bonitas que me lembro de ter visto na minha infância. Muito poucas. Mas tem uma imagem, não sei se vi na TV ou em algum quadro, que me marcou.
Era uma moça de cabelos escuros cacheados que voavam com o vento, um vestido que parecia feito de ar entorno do corpo, enquanto ela corria em um campo de flores cheio de borboletas coloridas.
Onde eu morava não existia mulheres daquela forma. Lembro de ter pensado que aquilo não poderia ser de verdade. Era belo demais para ser real. Só podia ser inventado. E essa certeza continuou comigo mesmo depois que cresci. As belas eram apenas imagens em revistas ou na TV e sempre retocadas com maquiagem ou fotoshop.
Ela não.
Eu a vi assim que ela colocou os pés no pavilhão. Não tinha como não ver. Ela era a novidade. Carne fresca. Parecia um espirro de tão pequena. As detentas ficaram agitadas. Os gritos, as determinações de posse. Coitada, eu pensei. Não vai durar uma semana. Mulher bonita aqui não dura.
Não dei importância e me afastei. Não gostava de franguinhas apavoradas chorando ao meu redor. Minhas serviçais não pensavam como eu e pediram minha autorização para reivindicar a novata. Só não tragam chororô pra perto de mim, respondi. Nem acreditei quando as três apareceram feridas. Pensei que a Pata já tivesse assumido a franguinha e a corja dela dado uma surra nas idiotas.
Ela estava sozinha, foi a informação.
Como sozinha?
Eu precisava ver de perto.
Quando me aproximei da arquibancada, não pude acreditar. Os cabelos escuros, os olhos verdes, o corpo diminuto. Parecia que eu estava olhando para a mulher da imagem na minha infância.
Sem maquiagem, sem fotoshop. Isso que é mulher bonita. A primeira que vi na minha frente. A empáfia, a ausência de medo ao falar comigo. Todos ali tinham medo de mim. Todas as vadias presas, as agentes, os policiais. Até o merda do juiz que proferiu minha sentença tinha medo de mim. O porco não teve coragem de olhar em meus olhos para me condenar. E eu tinha certeza de que teria se borrado se tivesse feito.
O medo era algo comum ao meu redor. Mas não para ela, a garota bonita dos olhos verdes. E isso que eu ainda não tinha visto as malditas borboletas.
Ah! Aquelas borboletas tatuadas nas costas dela. Parecia que a mulher da minha infância tinha saído do campo de flores e as borboletas tinham gostado tanto dela que grudaram em seu corpo para poderem acompanhá-la.
Me apaixonei.
Sim. Não tinha como não ser. Linda como um anjo e lutava como um demônio enraivecido. Seus olhos verdes nunca titubearam ao me encarar, nunca demonstraram fraqueza. Mais do que sua aparência, foi seu espírito guerreiro que me conquistou.
Eu gosto de homens, ela disse. Nada é perfeito. Pelo menos até a chegada da loira. A minha ninfa guerreira reivindicou a loira chorona para ela. Era compreensível, as belas se unem.
Mas não sei se as coisas eram como as duas queriam que todos pensassem. Talvez minha ninfa só quisesse proteger a loira inútil. Foi o que ela fez com todas as cadelas desprotegidas desse inferno, acolheu, tomou para si, sem nunca pedir nada em troca.
Mocada em meu canto estratégico vejo as duas rirem, enquanto minha ninfa solta e prende os cabelos outra vez. Ela tem os cabelos mais lindos, mas nunca os deixa soltos. Pena. Em todo esse tempo, desde que saiu, as duas nunca tiveram uma visita íntima, nunca. Eu sei, porque sempre estive aqui, observando. Se fossem o que diziam ser, elas teriam. Um peso, que eu não sabia estar carregando, deixou o meu peito.
A falsidade sempre me rodeou. A mentira faz parte do meu meio assim como do meu ser.
Eu gosto de homens, foi o que ela disse. Vê-la com a loira a colocou no mesmo nível dos mentirosos. A certeza de que ela não mentiu me liberou de uma mágoa que eu não sabia que me consumia. Ela não me rejeitou todos aqueles anos porque eu sou quem sou. Eu não a tive, mas a loira também não.
A loira passa os dedos sobre um dos olhos da ninfa, que daqui posso ver que está inchado. Ela saiu daqui, mas não está tendo vida fácil. A loira parece dar uma bronca nela que gira os olhos, diz alguma coisa e as duas riem.
O sorriso dela é algo brutal. Para mim, que cresci entre gritos e socos, algo tão doce tem a capacidade de me derrubar, me desarmar. A violência me moldou, me transformou no que sou. Não havia sorrisos perto de mim, a não ser de imbecis que tentavam tirar sarro da favelada. Os sorrisos deles nunca duravam e sempre terminavam em poças de sangue. Em pouco tempo ninguém mais sorria perto de mim, o medo deles não permitia.
A loira diz alguma coisa e leva um soco no braço. As duas discutem. E agora quem quase sorri sou eu. Quase.
Elas nem sonham que a sentença da loira foi decretada. Morte foi a ordem recebida lá de fora. Alguém quer dar uma lição na minha ninfa usando a loira. Nunca fui daquelas que recebem ordens, não vou começar agora. Muito menos para satisfazer os desejos daquele abutre carniceiro. O Delegado pode governar lá fora, mas aqui dentro mando eu. Além do mais, prometi para ela que iria cuidar da loirinha dela, não posso voltar atrás na minha palavra. Não para ela. Mas o desgraçado está dificultando as coisas para mim. Minhas mercadorias estão deixando de entrar, mas tudo bem. Ela não está mais aqui.
Mas que merda!
No que ela me transformou?
A porra das drogas não estão mais entrando e eu pensando nas merdas dos cremes para cabelo.
Inferno!
Como sinto falta de poder observar. Olhá-la no banho era bom, mas não se comparava a vê-la lutar. Talvez por isso eu não cumpri a ordem recebida. A loira foi responsável pelas melhores lutas da minha ninfa. Ela nunca lutou tanto aqui como fez depois da entrada da loira. Isso e o fato de que se a loira continuar aqui, ela continuará a vir.
A hora da visita está terminando, as duas se levantam e se abraçam. Como sempre a manteiga derretida começa a chorar. Minha ninfa a conforta. As duas se despedem e lá vai ela em direção ao portão.
Eu estou aqui. Bem aqui. Olha pra mim. Olha.
Ela parece ter ouvido os meus pensamentos. Seus olhos verdes encontram os meus. E ela faz aquilo. Minha ninfa guerreira sorri para mim. Um sorriso completo e radiante direcionado a minha pessoa. Ninguém mais sorri para mim.
Controlo a ansiedade e retribuo seu aceno de mão com um leve balançar de cabeça. Não sorrio de volta. Não faz parte de mim. Meu olhar a acompanha mesmo depois que seu ser diminuto some em meio aos outros que deixam o presídio.
Só quando o pátio está vazio e o silêncio impera, saio do meu canto e vou em direção ao vestiário. Odiando perceber que já estou contando os minutos até o próximo sábado, a próxima visita que não é minha. E percebo o quanto estou cansada. O quanto essas paredes encolheram desde que ela partiu.
Abro o chuveiro e me enfio embaixo da água gelada, tentando amortecer meus sentidos e voltar a ser eu mesma. Sem ela. Sem o seu sorriso.
Fecho os olhos e borboletas coloridas fazem sua revoada em minha mente.
Ela é a minha fraqueza. E em um presídio não se pode ter fraquezas.
Há quanto tempo estou sozinha, me pergunto quando me viro e me vejo rodeada de vadias. Mas não as minhas vadias. Não me lembro da última vez que vi minhas serviçais. Talvez antes de ir para o pátio esperar pela chegada dela. Agora elas não estão aqui, com certeza. Se eu tivesse me preocupado mais com a falta das drogas, ao invés dos cremes para o cabelo. Certamente, não foi dos cremes que as minhas vadias sentiram falta.
 O Delegado manda lembranças.
Claro que sim. Por que não mandaria?
Eu podia com elas. Com cada uma delas. Quem sabe eu quebrasse o pescoço da Pata? A infeliz merecia. Alguns golpes, talvez uma noite na enfermaria e eu provaria para as vadias que me abandonaram por causa de um breu, que eu não era a rainha da porra toda por causa delas. E eu tocaria o foda-se. Muitos sorrisinhos idiotas morreriam em uma poça de sangue nesta noite. Eu adorava isso. Gritos de dor, gemidos, vermelho escarlate se tornando marrom. Pena que isso ficou no passado.
Cansaço.
Um cansaço quem vem da alma. Se eu ainda tiver uma.
Uma vida de violência, dor e morte. E qual foi o meu legado? E o que eu consegui com isso? Traição. Abandono.
Eu escolhi para mim mesma o nome da deusa do amor e da beleza para representar aquilo que eu nunca tive. A beleza nunca me pertenceu e o amor não foi feito para mim.
O ódio e a feiura da vida foram as únicas coisas que conheci. E serão as únicas a me acompanhar até o fim dos meus dias. Não é tão ruim até você ter um vislumbre do outro lado. Minha ninfa guerreira me apresentou à beleza e quando sorriu para mim ela me presenteou com uma fração de tudo aquilo que não posso ter. De tudo aquilo que todo o ódio, a dor, o medo ao meu redor, nunca me permitiram sentir.
Cansada. Estou cansada.
Fechei os olhos e abri os braços. A dor ultrapassou minha carne, rasgou meu fígado, perfurou meu pulmão. O chão frio me alcançou, mas nem um gemido escapou dos meus lábios. A água gelada carregou o vermelho escarlate, ele não ficará marrom. Meus olhos estão pesados. Fechá-los é doce. Minha ninfa está ali, sorrindo e acenando para mim. A dor já não existe quando sorrio de volta.


(Trecho do livro Anseios, disponível no Kindle Amazon)

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Leney Veloso

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