O som na gaveta


Leney Veloso

- Mulher inútil dos infernos! Não serve pra nada. Nada. Só me dá despesa. Não faz nada certo, nada.
Cada grito era reforçado pelo cinto atingindo minhas pernas, meu corpo, meus braços enrolados na cabeça. Eu não precisava olhar minhas pernas para saber o tamanho dos vergões. A ardência sobre elas já me dizia muita coisa. O gosto metálico em minha boca e a dor muscular para me manter imóvel aumentavam o meu pesar. Me mover só aumentaria o castigo.
A ladainha continuava, eu era acusada de um crime que eu nem sabia qual. Poderia ser o café com muito açúcar, ou pouco açúcar, muito quente, ou frio demais. Ou então o excesso de sal, ou a falta dele na sopa. Isso era o pior. A incerteza. Nunca saber os motivos das surras, o que desencadearia o acesso de violência. Talvez o único motivo fosse o prazer em me submeter, apenas porque podia.
Os golpes pararam, as ofensas não. Mantive os olhos fechados e aguardei o som da gaveta empenada, do guarda-louças azul, abrindo. E o ir e vir da munição, girando lá dentro com o movimento brusco. A espingarda velha ficava largada em cima do mesmo guarda-louças. As cápsulas sempre faziam o mesmo barulho toda vez que ele abria aquela gaveta. Eu nunca as vi. Aquela gaveta era dele. E ele sempre a abria atrás do fumo de rolo que guardava ali. Eu não a via, a munição, mas a imaginava pontuda e brilhante me chamando. E aguardava por ela, ansiosa. Não, eu não desejava usá-la contra ele. Eu nunca teria coragem. Eu ansiava pelo dia que ele a pegaria, cessando o barulho de ir e vir e girar no fundo da gaveta, apanharia a espingarda sobre o armário e a descarregaria sobre mim. De preferência entre meus olhos. Imaginava a dor sendo substituída pela paz e os braços da minha mãe que se foi há tanto tempo, o seu sorriso doce me acolhendo. Esse era o meu sonho, o meu desejo, a minha liberdade.
Mas eu não ouvi o som da munição no fundo da gaveta. Contive meus gritos e controlei meus braços para não reagir quando ele me levantou do chão pelos cabelos e me jogou de bruços contra a mesa da cozinha. Fechei meus olhos e senti o frio da madeira contra minha face já ferida, o ar gelado contra minhas nádegas quando meu vestido foi levantado com brusquidão. E me preparei para aquela outra dor, sonhando com as cápsulas girando no fundo gaveta.

(Trecho do livro Destino, disponível no Kindle Amazon)

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Leney Veloso

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