Menos um, mais um


Leney Veloso

Giro o pescoço e massageio a nuca. Tiro minha jaqueta e a jogo sobre a cadeira no canto. Deito-me na cama de baixo no beliche e fecho os olhos. A imagem do homem preso nas ferragens, enquanto lutava para respirar, retorna. Puxo o cobertor sobre o meu corpo, viro de lado e penso no meu sobrinho e suas peripécias. Minha estratégia para tentar esquecer a rotina e dormir um pouco. Fecho os olhos, cinco segundos depois toca a sirene.
Inferno!
Alguém bate com a mão espalmada na porta aberta e grita: engavetamento.
Inferno duplo!
Uma, duas, três ambulâncias. O caminhão do resgate. O som de sirenes múltiplas corta os céus. Seguimos em comboio. Ao lado do motorista, a única coisa visível são as lanternas vermelhas e as luzes giratórias do veículo à frente.
Inferno triplo!
Antes de descer da ambulância os gritos de dor e apelos por socorro atestam que a noite será longa e o dia sombrio. Carros, caminhões, ônibus, todos amontoados parecendo de um menino que cansou de brincar com seus Hot Wheels e resolveu largá-los no canto do quarto.
Meus colegas se espalham. Apanho minha mochila, o material ali será insuficiente.
O grito de ‘cuidado’ vem alto. Só tenho tempo de me lançar sobre o barranco, enquanto vejo a ambulância em que estava ser arrastada por uma carreta que não parou a tempo. Levando consigo aqueles que não foram tão ágeis.
- Mas que inferno da porra! Alguém sinaliza essa merda! – grito para ninguém em especial, já correndo em direção aos meus colegas caídos.
Vejo nos olhos de Adolfo, o motorista que me trouxe até ali, que minhas palavras de consolo não servem para nós. A realidade é uma droga. Prometo que irei transmitir à sua esposa que os últimos pensamentos dele foram para ela. Fecho os olhos por dois segundos e respiro fundo. É o tempo para o luto. A vida é mais importante. A morte se lamenta depois.
A luz é escassa, o cheiro ocre, intenso. Minha perna é agarrada. O rapaz tem um corte profundo na testa, mas não corre risco imediato. Contenho o sangramento e corro até o próximo.
Uma área é aberta, as pessoas separadas por gravidade. Ambulâncias do SAMU chegam e os médicos se responsabilizam pelos dessa área. Fico com aqueles que ainda não podem ser removidos. Um civil, que estava auxiliando na remoção das vítimas, cai ao meu lado. Um corte na lateral direita, perdeu muito sangue. Faço o possível para conter a hemorragia e o repasso para a equipe do SAMU.
O material termina, a improvisação inicia. Qualquer coisa é válida para termos menos um na contagem final.
Fugi do ônibus o quanto pude, mas um “Liv, precisamos de você” não pode ser ignorado. Evito olhar para o motorista coberto por um lençol. No fundo do ônibus dois bombeiros e suas serras. As faíscas de metal contra metal são altas. Protegida embaixo da jaqueta do bombeiro uma garota, não mais que dezessete. A tatuagem de flores no pé deformado parece fora de contexto.
O céu começa a ser tingido de laranja, realçando o vermelho no asfalto. A neblina ainda é densa, mascarando o tamanho da catástrofe. As ambulâncias que foram, retornam. Com uma nova mochila, passo por um vão apertado, enquanto dois bombeiros seguram as metades das ferragens para eu entrar. A motorista inconsciente. Um corte extenso na perna, uma luxação na cabeça. Apoio para o pescoço, torniquete na perna, acesso venoso.
Um balbuciar suave no banco de trás. Milagre. O bebê em seu casulo sorri um sorriso banguela. Sorrio de volta, grata por termos mais um.

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Leney Veloso

E-mail: leneymv@hotmail.com

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