Dias de Glória


Cris Netto

Meu universo de criança era limitado. Apenas alguns passos do edifício e já estava na casa do meu avô. Poucas ruas adiante, a padaria, o mercadinho e o salão de beleza. Da casa do meu avô até a padaria, eu ficava calculando quantos chocolates poderia comprar com o valor do troco. Meu avô sempre pedia para comprar pão, mas nunca perguntava pelo troco. Ele sabia que eu exercitava a matemática no percurso. Mais algumas quadras, ficava o colégio onde eu e meu irmão estudávamos. Nos tempos de ouro, minha mãe nos levava para a escola de táxi. Para mim era pura ostentação chegar de táxi na escola. Para minha mãe, praticidade. Muitas vezes o motorista era conhecido, e ficava esperando por ela, para levá-la ao trabalho. Dias de glória para uma criança nem sempre significam o mesmo para os adultos. E essa é a mágica dos pais. Dourar a pílula com açúcar. Não distorce a necessidade do remédio, mas constrói doces lembranças.

Na Oscar Pereira, o táxi parava na sinaleira com a Aparício Borges. A casa era sombria, com muro verde até em cima. Da construção em si, não se enxergava nada. Somente a placa gravada no muro verde. Ler placas foi a primeira experiência literária que tive. Consultório de dermatologia. Dr. Sérgio Célia. Um dia tive a experiência de conhece-lo. Pequeno, esquisito, excêntrico. Tanto quanto sua casa/consultório. Na minha imaginação, sua aparência era muito pior, mais assustadora. Após aquele primeiro e único encontro, nunca mais teve graça parar naquela sinaleira. Mudei o foco para o outro lado da rua, onde se encontrava o Taka Lanches. Sempre quis provar o xis que aparecia na placa, nunca pude, porque minha mãe controlava muito tudo o que comíamos. Até hoje me pergunto qual seria o sabor do xis do Taka. Na minha rebeldia adolescente, entrei no Taka. Lugarzinho sujo e gordurento. Não me apeteceu nada do cardápio. A experiência de transgressão já estava completa, só por estar lá.

Mais adiante, naquela quadra, a Igreja Nossa Senhora da Glória. Bela igreja, com seus vitrais da Via Sacra, altar limpo, sem muitas imagens, apenas Cristo e Sua Mãe, em sua altivez e beleza. Entrava lá pelo menos uma vez por ano, para apresentação do Dia das Mães. Sob o olhar atento da Boa Mãe, cantei Maria, Maria, para a Maria da minha vida, e para todas as outras, que com olhos marejados, aplaudiam suas crianças desafinadas, transbordando doçura e amor.

Um pouco mais adiante, a praça e por trás, o Colégio homônimo da Igreja. Contornando o posto de gasolina, parávamos na entrada principal. Tio Telmo e Tia Iolanda nos recebiam com seu molho de chaves e sorriso acolhedor. Transpassávamos o portão, a fonte com a imagem da Santa, os jardins sempre impecáveis, e ganhávamos o pátio. Pedra, degraus e bancos. Gelado no inverno, caldeirão no verão, mas sempre o pátio. Lugar de presença, de amigos, de pipoca caída no chão. Por 14 anos percorri esses caminhos, hoje, diferentes, mas guardados no coração do jeitinho que eram, com as cores da infância, sem as sombras de agora.
Glória era também o nome do bairro. Escrito em placas espalhadas pelas ruas. Eu passava por elas e as lia em voz alta, repetindo várias vezes. Era uma palavra acolhedora, sonora, positiva. A cada aparição, sabia que estava perto de casa. Tempos depois, passaria por todos esses pontos, para chegar ao hospital onde meu filho nasceria. Na Rua da Gruta, a mesma Santa, com seu olhar singelo e protetor, dando Sua benção para novos caminhos. Mas aí já é outra história, cheia de novas estórias.

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Cris Netto

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