A Ditadura dos likes


Cris Netto

Plantei uma horta, aprendi a cozinhar, li oito livros e meu filho adora as aulas virtuais. Postei tudo no Instagram. Tive vários likes, um alcance enorme e novos seguidores. E podem acreditar, é verdade esse bilhete.

É a verdade que os outros querem enxergar. De dores eles já estão cheios. Vivenciam o cansaço, a derrota, o abatimento, a tristeza no seu dia a dia. Acreditam que suas selfies não teriam repercussão, por isso deletam do celular. A grama do vizinho é sempre mais verde, e hoje em dia é ainda mais fácil ostentar publicamente o que lamentamos internamente.

Veja a realidade por trás da postagem. A foto da horta foi tirada na feira orgânica do bairro, em tempos pré pandemia, quando os vizinhos se falavam e não eram vistos como hospedeiros ambulantes de um vírus mortal. Estava esquecida na galeria, se não foi compartilhada, ninguém sabe que não é minha. Tive que assumir o fogão. Meus bifes ficam duros e queimo o arroz com uma regularidade de dar inveja a qualquer um. Pedimos comida pronta e o único trabalho que tenho é o de arrumar a mesa e sujar as panelas para as fotos. Os sorrisos da família refletem a alegria de enfim, saborearem comida de verdade. Meu filho sentado na frente do computador estava vidrado vendo Peppa Pig, e não na live da escola. Mas o reflexo do flash escondeu o programa e a legenda da foto mascarou a verdade. Os livros eu realmente li, mas nos últimos três anos, não nos cinco meses de isolamento pelo qual o mundo está passando. Passado, presente e futuro são abstratos nas redes sociais. Só existem se você os nomeia. Se não, cabe ao leitor acreditar no que lhe for conveniente e creditar o tempo que melhor lhe convier para a história a ser comentada naquele dia.

Infelizmente essa deve ser a verdade de milhares de famílias e, por isso mesmo, não geram curtidas nem movimentam as redes. A positividade tóxica de celebridades e de desconhecidos é viciante e ao desligar o telefone à noite, ficamos pensando no quanto de vida ainda nos falta para sermos iguais a eles.

O que o celular e o computador não nos mostram, é que enquanto os idolatramos, muitos dos seres humanos por trás dos perfis encerram seus dias chorando embaixo do chuveiro pelas suas derrotas, tão iguais às nossas, mas orgulhosos de suas fotos bem editadas e suas legendas produzidas. A noite chega e com ela o silêncio da verdade de um quarto escuro e a tristeza de uma vida inventada. Só até o amanhecer, com o raiar do sol, começa o circo novamente. É a ditadura dos likes imperando em um mundo assustado e egoísta.

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Cris Netto

E-mail: cristiane.snetto@gmail.com

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