Dèjá Vue


Ana Helena Reis

O espaço era pequeno, cheirando a mofo, mas suficiente para abrigar a meia dúzia de pessoas que se reuniram para discutir o projeto de restauração da propriedade. Uma mesa improvisada foi colocada.
Ele era o encarregado de tratar dos aspectos referentes à legislação urbanística a que teria que ser submetida a restauração, e quem conduziria o processo eram os arquitetos ali presentes.

O objetivo do encontro era conhecer o espaço, recentemente arrematado em leilão. Tinha sofrido um grande incêndio, provocado por uma fagulha da lareira. Depois do acidente, que ocasionou a morte da matriarca da família que ainda lá habitava, ficou abandonada por muitos anos por seus herdeiros. O que fora uma casa, agora não passava de um amontoado de escombros cobertos de fuligem e musgos.
O desafio do grupo era grande, pois restaram somente pedaços de algumas paredes e não havia uma planta que pudesse identificar os diferentes cômodos e suas metragens. Começaram a conjecturar como iriam reconstituir o espaço, de forma a se torná-lo novamente um lar, da forma como fora construído originalmente - essa era a solicitação dos novos proprietários.

Os arquitetos tomaram a palavra, e a discussão se encaminhou para uma busca histórica de referências da propriedade, já que nenhum dos presentes conhecia a propriedade até esse encontro.
Assim como os outros, até esse momento ele nunca tinha estado no casarão, nem se interessado por saber o que tinha sido essa propriedade. Mas, de repente, foi tomado de uma compulsão a assumir a liderança e, para surpresa geral, pediu a todos que o seguissem pelos escombros. Arrastando um pouco um dos pés, fez surgir uma pequena marca no chão.

- Vejam, aqui deveria ser o quarto do casal, que, à época, teria um banheiro privativo ali à esquerda e um closet, nesse espaço contíguo. Do lado esquerdo as roupas da senhora e do direito as do marido. Ah! e ali, no canto, deveria ser a rouparia.
Com grande desenvoltura, dando passadas largas para medir de uma ponta a outra o que nenhum dos presentes identificou como pontos de referência, continuou:
- Nesse outro espaço, o que seria o quarto das crianças, com lugar suficiente para três filhos. Armários de um lado, as camas enfileiradas de outro para que recebessem a luz da janela.
E assim continuou o percurso, dirigindo-se para o outro lado da propriedade por cima de vigas retorcidas e entulhos.
- Aqui a sala de estar, onde deveria estar a lareira. Local amplo, como era de praxe, para abrigar um piano de cauda ao fundo.

Sem titubear, retratava imagens do que fora a vida nessa propriedade, mesmo sem se dar conta do quão insólita era a sua capacidade. O grupo que o acompanhava trocava olhares, estupefatos.
Num determinado momento, chegou ao que seriam as dependências de empregados e ia começar a descrevê-las quando seus olhos se turvaram.

A figura de uma jovem, de uniforme de doméstica que mal cabia no corpo onde abrigava uma criança, se materializou em sua mente; estava naquele quarto, naquele dia fatídico do incêndio.
Jogou-se no chão em posição fetal, e chorou copiosamente por sua mãe, falecida durante o parto, em circunstâncias a ele nunca reveladas.

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