Crimes de família e outros mais


Ana Helena Reis

O quanto uma mãe é capaz de admitir problemas sérios de caráter de um filho? Até que ponto o instinto materno de proteção se sobrepõe aos preceitos morais, ao sentido de justiça, quando a aceitação da verdade pode significar a responsabilidade por uma condenação do ente mais querido?

Esse é o drama vivido por Alicia, no filme de ficção argentino The Crimes That Bind, lançado no Brasil pela Netflix em 2020.

A trama acompanha dois casos jurídicos sendo explorados em paralelo. De um lado Daniel, filho de Alicia e Ignácio, um usuário de drogas acusado de tentativa de assassinato e estupro da ex-esposa Marcela, com quem tem um filho. De outro, a funcionária doméstica do casal, Gladys, acusada de homicídio de um filho no momento do nascimento, em circunstâncias sombrias.

O filme é capaz de revelar, de forma exemplar, o processo interior por que passa Alicia, desde o momento em que mente para defender o filho no processo movido pela ex-mulher, até o desfecho final em que a empregada, já condenada, revela que o recém-nascido que deixou morrer, na verdade era fruto de um estupro de seu próprio filho.

Essa revelação escancara a realidade que sempre esteve presente no fundo dos pensamentos dessa mãe. A dor de admiti-la, porém, foi tão forte que enevoou seu olhar. O sentimento de culpa por estar, com sua omissão, condenando pessoas inocentes, acaba se sobrepondo e ela entrega o filho à Justiça.

Esse dilema, levado ao extremo na ficção Crimes de Família, na verdade faz parte, em maior ou menor grau, dos nossos dramas cotidianos, não só como mães, mas como pessoas.

Se formos cavoucar lá no fundo, também vamos descobrir em quantas situações agimos como Alicia, alimentando uma cegueira em relação à dor dos outros, para preservar o nosso status quo, não abrir mãos de nossos privilégios. Quantas vezes, colocamos nossas afinidades na balança, na hora de julgar quem está com a razão numa discussão. O quanto nos omitimos ao perceber uma injustiça para não nos comprometermos e muitos outros confrontos interiores a que somos submetidos.

Como Alicia, encarceramos no mais fundo de nossa consciência aquilo que nos incomoda, o que, se submergir, poderá exigir atitudes que não temos coragem de tomar. Mas, em algum momento, essa conta vai ser cobrada.

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