Ruídos


Vitória Zaj



Hoje a televisão do gabinete ligou sozinha. Era só chiado e imagem virada em ruído. O aparelho fora da tomada. Avisei a secretária que precisava sair mais cedo, tomei um comprido de setecentas gramas para dor de cabeça, vomitei até as tripas. E a televisão ligada, imperiosa em seu ruído que desafiava a tomada estirada no chão.

Voltei para casa com as curvas de meu cérebro dançando feito esponja em minha cabeça. Há um mês tudo corria conforme o estipulado, havia um show pirotécnico planejado e um primeiro palanque eleitoral havia sido erguido. Nenhuma linhazinha fora do lugar. Porém, meu show de fogos de artifícios perdeu a graça que ostentava em meu primeiro ano de prefeita, agora me acusavam e pediam para eu revisar meus conceitos. A arena estava posta, meu pescoço era o prêmio.

Não havia muitas alternativas, ou eu cancelava meu show e desagradava meus eleitores mais fervorosos, ou o mantinha e dava álcool para minha oposição. Lascada eu estava. Acho engraçado que cachorro late ano todo, atrapalha meu sono e agora não aguenta quinze minutos de foguetório. Aquela maldita ONG, havia feito o fiasco e agora posava nas redes sociais. Eu já não durmo há mais dez dias.

Porém, nada anda sozinho por ai, nem mesmo eu. No meu caso, um problema acompanhado de fotografo. Piada engraçadinha da vida, sempre quis sair na capa de jornal e lá estava eu, bem aprumadinha em um lugar que não devia estar e falando com gente que eu não devia ter vínculo algum. Mais um vexame. Explodi, admito, mandei dar um susto no fotografo.

Não acharam meu acompanhante. Mas a busca e revista na sua casa renderam comentários e o primeiro de uma série de estranhos acontecimentos. Segundo meus amigos, todos aparelhos da casa ligados, porém distantes da eletricidade. Sem contar as fotos reveladas com rostos apagados espalhadas pelo chão. Não dei a devida atenção, pouco me importa os fantasmas que atormentam meu perseguidor, não é a eles que eu quero.

Todavia, a situação requeria insistente atenção. A cada dia, uma nova bizarrice. Eu passei a encontrar fotos e mais fotos de gente com rosto desfigurado em borrões. Encontrava as imagens nos meios de notificações e processos da prefeitura, ou ainda em minha casa, nos lugares menos esperados como no armário do banheiro. Passei a me sentir intimidada por uma presença que nem sabia ao menos sua aparência.

Há cinco dias uma dor profunda e aguda tortura meus ouvidos. Um arranhão violento e barulhento a rasgar meus tímpanos. Qualquer ruído me causa pânico, meu coração martela dentro de mim e o suor verte. Minha boca secou e passei a vomitar todos os dias, já não tenho mais apetite algum.

Hoje, acordei com dores nos músculos e meus ossos estalavam em qualquer movimento realizado. Minha mente zumbia e eu não conseguia prestar atenção alguma na pilha de papelada que jazia em minha frente. Cancelei reuniões e desliguei todos aparelhos eletrônicos de meu gabinete. Eu só queria o silêncio e o escuro. Foi então que meu televisor ligou, fora da tomada.

Quando cheguei em casa, com as mãos trêmulas e os olhos inchados, dispensei a babá de Enzo e me estirei na sala de estar. Meu filho rabiscava em ritmo quase automático, nem mesmo virou para me lançar um de seus sorrisos largos e desdentados. Observei o menino e seus desenhos disformes, figuras esguias e de dedos longos. Nenhum tinha rosto.

– Que é isso, Enzo? – perguntei tirando o desenho de seus dedos gorduchos.

–São os tiu da paia. – ele disse me lançando um olhar confuso.

Mais uma noite e eu não durmo. A pilha de papelada sob minha mesa só aumenta, mas eu não leio, nem assino mais nada. Nem mesmo falo com meus aliados, não faço mais meus jeitos para meus amigos. Meus aparelhos eletrônicos parecem adquirir vida própria, suas vontades transmitidas em ruídos distantes da tomada. Mando que retirem todos equipamentos de meu gabinete. Não sou mais tão popular e um burburinho sobre minha sanidade começa a se espalhar feito fumaça. Fumaça de pneu queimado.

Diversas vezes batem em minha porta, questionam sobre o que vai ser do meu show de fogos. A empresa responsável pela queima de fogos me manda mensagens e eu as ignoro. Representantes tentam conversar pessoalmente comigo, peço para que minha secretária mandar o secretário de cultura se resolver com eles. Faltando dois dias para o Ano Novo, tudo entra nos eixos dentro do plano do show. Barato e bonito como deve ser.

Quando chega o dia 31, tudo parece enfadonho demais. Meus membros reclamam de dor e minha cabeça parece prestes a despencar, vejo vultos sem rostos pela praia. Compro algumas cachaças baratas e bebo antes do meu discurso no show da virada de ano. Subo ao palco trôpega, caio e xingo os expectadores. Manifestantes, moradores e turistas se aglomeram diante do show que eu mesma faço. Falo um discurso vazio, nem mesmo os opositores parecem satisfeitos. Eu havia ultrapassado o limite. Perco meus sentidos quando o primeiro rojão é estourado.

Acordo sendo cercada por celulares que filmam meu estado sem pudor algum. Alguém ergue meu corpo mole e sou levada em direção de casa. Rojões dos moradores estouram sem cessar e meus músculos endurecem, meus ouvidos sangram de dor. Tento correr, alguém me segura e eu me debato. Acho que vou morrer. Cachorros assustados com os barulhos passam por meus pés, tenho vontade de segui-los, me atirar ao mar para aliviar meu sofrimento. Porém alguém me empurra para dentro de um carro.

Sou praticamente atirada para dentro de minha casa. Padeço sob o carpete do hall de entrada, chamo por meu filho e nada. Quando recupero um pouco das forças, me arrasto em direção à sala e sua vista para o mar. Alguém muito alto e de mãos grandes está escorado na sacada, não consigo distinguir seus contornos, tudo é um grande borrão. Um silêncio cortante se propaga e vejo o primeiro fogo de artifício de meu show ser lançado. Assim como chegou, o silêncio se vai e o estardalhaço dos fogos toma conta de meu cérebro.

Da varanda vejo um objeto gigantesco e metálico se aproximar de minha casa. A criatura em minha sacada se aproxima de mim, sua pele etérea tocando minha pele humana. O alarme de minha casa dispara, os celulares vibram e todas as televisões ligam. Meu corpo se curva e eu desabo para a escuridão quando ouço o estilhaçar dos vidros da varanda se misturar com os estouros luminosos de meu show pirotécnico.

deixe um recado | voltar

E-mail:

Pageviews desde agosto de 2020:

Site desenvolvido pela Plataforma Online de Formação de Escritores