os 7 Mandamentos


Ana Helena Reis

Ouvindo um relinchar conhecido, apesar do timbre estar muito rouco, Major se vê no estrado com a cama de palha, que foi seu espaço no celeiro da Granja do Solar. Olhando ao redor, reconhece a égua Quitéria, alquebrada, olhos já enevoados pela catarata.
Ela imediatamente chama seu grande companheiro, o velho Benjamim, burro de poucas palavras que, com sua sabedoria, nunca tinha emitido opinião sobre a Revolução. Benjamim se junta a eles, com o mesmo semblante rabugento e o focinho um pouco mais branco.
— Onde está Sansão? pergunta o Major — E os outros animais?
Quitéria baixa ainda mais a voz, olha para os lados para ver se não está sendo ouvida e responde, virando a cabeça e batendo trêmula as patas no chão do celeiro:
— Major, me permite trata-lo por Camarada? pergunto porque esse termo não é mais permitido aqui. Sansão foi sacrificado, meu Camarada, um choque! Morreu ainda acreditando nos ideais da Revolução e por nem um minuto deixou de trabalhar e incentivar os outros com seu bordão: “Pra frente Camaradas”
O Major olha para os dois, incrédulo:
— Mas como “foi sacrificado”? foi morto por quem? Alguém mais foi morto?
Benjamin, o único dos antigos Camaradas que tinha a memória de tudo o que se passou desde aquela noite histórica do discurso do Major, três noites antes de sua morte, toma a palavra:
— Sansão foi morto por ordem de Napoleão, meu Camarada.
— Um animal sendo morto por outro animal? Exclama o Major. — Mas como? Em que momento o 6º mandamento do Animalismo foi violado e por que?
Quitéria olha para Benjamin, e toma a dianteira:
— Major, o Garganta explicou, mas acho que o Sr., durante esse tempo no além, deve ter esquecido. O mandamento é: nenhum animal matará outro animal, desde que não haja um motivo. E, no caso de Sansão, ele foi levado para ser sacrificado porque estava na sua hora. Os outros que foram mortos eram desleais, traíram o líder e se aliaram a Bola de Neve que era um inimigo do regime.
— Desde que não haja motivo? A perplexidade era tal que o Major pediu um pouco de leite e maçãs para se refazer. Ao que Quitéria logo retrucou:
— Sinto meu Camarada, mas agora a nossa ração é controlada, pois essas iguarias são reservadas para os porcos da Casa Grande. Garganta já nos explicou que, como líderes, eles precisam mais do que nós de comida.
— Mas, e o 7º mandamento – todos os animais são iguais? Já quase retorcendo o rabicó, o Major, idealizador do que deveriam ser os mandamentos da Revolução, a garantia de seu sucesso, tentou ir um pouco mais fundo nessa questão:
— A Revolução não resultou na derrubada do gênero humano e a criação de uma comunidade livre, em que todos os animais vivessem em perfeita camaradagem, partilhando o resultado de seu trabalho igualmente? O que aconteceu depois da minha partida?
Quitéria, que nunca tivera perfil de desobediência ou contestação, esclareceu:
— Sim Major, mas o Benjamim me contou o que estava escrito na parede em que foram colocados os sete mandamentos: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Por isso alguns porcos e os cães tem privilégios, pois cuidam da segurança do Presidente Napoleão. Eles têm o direito de morar na Casa Grande, e se apropriar daquilo que antes era dos humanos. Está nos mandamentos 3, 4 e 5, Garganta leu para nós.
— Mas Quitéria (perguntou o Major), esses não são exatamente os mandamentos que eu criei, não existiam essas ressalvas de direitos. Os animais não leram os originais?
Benjamim tomou a palavra:
— Não Camarada, toda a comunicação sempre foi feita pelo Garganta, pois os animais não aprenderam a ler. Dentre todas as comissões formadas incialmente, a de educação não vingou. A alegação foi que, em sua maioria, essa geração de animais não tinha capacidade de aprender a ler e, portanto, o projeto foi abandonado. Durante esses anos, tudo o que era importante, todas as decisões de Napoleão, foram comunicadas e justificadas pelo seu porta-voz, o Garganta, que tem o dom da palavra.
O Major se cala, fecha os olhos e tenta recompor a lembrança de seu discurso e o que, nele, era um preceito fundamental sem o qual não faria sentido a Revolução. Decide fazer uma última pergunta:
— E o princípio original que estava no 1º e 2º mandamentos: “Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo e qualquer coisa que ande sobre quatro pernas ou asas é amigo.” Esse ainda se mantém, certo?
Benjamin, conformado, como era de seu perfil, olha para aquele que foi seu grande mentor e, já quase sem fôlego, faz a confissão final:
— Bem, as novas gerações de animais da Granja já foram educadas de outra maneira Major. Agora mesmo ouvi umas ovelhas balindo um novo refrão, quando o Garganta saiu da Casa Grande sobre duas patas: “Quatro pernas é bom, duas pernas é melhor!”

O Major olha para seus dois antigos Camaradas e entende o sentido de sua volta. Tinha cometido um grande erro que deveria ser corrigido. Faltavam dois mandamentos essenciais, para que a sua utopia de sociedade igualitária não corresse o risco de ser deturpada. Para que não fosse destruída pela ambição daqueles que conseguissem deter o poder do conhecimento e da comunicação:

8º Todo animal deverá aprender a ler e escrever, independentemente da idade, raça, credo, gênero ou capacidade prévia de aprendizado

9º Todo animal terá acesso às fontes de informação de forma livre, para poder analisar, criar sua própria opinião e controlar o cumprimento do que reza a Constituição

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