Isonomia


Ana Helena Reis

Isonomia

Ana Helena Reis

Artur chega em casa, depois de algumas horas perambulando, dando um tempo pra poeira assentar. Ao abrir a porta, se depara com a mãe descabelada, de joelhos em frente imagem de Santa Anastácia – a virgem, de quem é devota.
— Cruzes! Está possuída agora, mãe? Levanta daí que já te falei que essa história de flagelo é da época da inquisição. Tão fora de moda...
Ana se arrasta de joelhos até ele, levanta os olhos e encara o filho.
— Como isso foi acontecer? Que pecado mortal eu cometi para merecer uma desgraça dessas? Um filho... Ana engole em seco — nem consigo pronunciar essa palavra.
— Me poupe, né, mãe? Segurei o quanto deu por causa da Sra e dessa maldita igreja, mas agora que eu e o Duílio vamos assumir, não tinha como continuar escondendo.
Ana fez o sinal da cruz três vezes por conta da blasfêmia, arregalou os olhos e baixinho, quase em sussurro, perguntou:
— Duílio? Quem é Duílio? E o que você quis dizer com assumir?
— Duílio é o meu bofe e, aliás, queria ter um papo sério com você. Levanta desse chão e vem sentar aqui.
Arrastando a mãe para o sofá, Artur deu um abraço e foi direto ao ponto:
— Duílio é o dono da veterinária que trabalho, nos conhecemos lá e sabe como é... foi só bater o olho e uuuu... paixão total. Um luxo de pessoa, mas sabe como é, né, mãe? Com a pandemia, o movimento da clínica diminuiu muito, e ele e eu estamos na maior pindura, não temos grana para alugar algum cantinho juntos e o meu quarto na pensão não aceita acompanhantes. .. será que não podemos morar aqui?
Sem conseguir balbuciar nenhuma palavra, Ana volta a se ajoelhar em frente à Santa Anastácia, cobre a cabeça com seu xale preto, acende uma vela e emudece.
Nesse momento, entra na sala Neli, a diarista da casa, com um prato de brigadeiros. A casa era pequena e, como as paredes tem ouvidos, ela já tinha entendido tudo o que estava rolando na sala. Inconformada, achou que esse era o momento de entrar em cena e dar uma cartada de mestre. Sabia da adoração que a patroa tinha pelo Tobias, aquela coisa de Pet Lover que é capaz de recolher até um vira-latas na rua, mas passa reto pelo cara deitado na sarjeta, sabe como é? Tinha ouvido falar que os cachorros podem ter um comportamento que, aos olhos dos humanos, pareceria homossexual – pegou então esse gancho e foi em frente.
— Artur, meu querido, como você está? Nossa, que bom que você veio nos visitar, trouxe esses brigadeirinhos para você... e para mim também, lógico.
— Então, minha santa, tudo belezinha por aqui? Dia tenso... Olha só ela lá, acho que peguei pesado, né? Duas bombas no mesmo dia em cima da coroa. Você já tinha sacado tudo, né?
— Lógico, criatura, desde sempre! — responde Neli gargalhando. — Mas deixa comigo que vou quebrar as pernas dela num minuto e pode crer, amanhã vocês estão se mudando pra cá.
— Dona Ana? Oh, D. Ana, preciso tratar de um assunto sério aqui, aproveitando que o Artur, que é veterinário, veio nos visitar.
Depois de rezar três Pai Nossos e quatro Ave Marias, Ana se levanta, come um brigadeiro e senta no sofá.
— Fale, Neli, que está acontecendo? Acho que nada pode ser pior do que a decisão que tenho que tomar hoje. Ai meu Pai do Céu, me ajude!
— Bem, o caso é sério. O Tobias está com um comportamento meio esquisito, sabe? Agora deu de fazer xixi como uma cadela. Saí com ele hoje para passear e a vizinhança já começou a apontar, cochichar. E mais... enquanto eu não troquei a coleira dele por aquela toda rosa de estrelinhas da vizinha não sossegou.
Muuuito estranho esse comportamento, né? Será que não é melhor o Artur examinar para ver se é algum problema?
Ana salta da cadeira.
— Como assim, comportamento de cadela? O meu Tobias? Minha Santa Anastácia, que mal eu fiz a Deus para merecer tantas provações? Agora até meu queridinho resolveu me envergonhar? Justo eu que excomungo essa pouca vergonha que anda por aí...
Neli dá a cartada final:
— Então... antes que isso caia na boca do povo e coloque a Sra numa sai justa com o pessoal da igreja, sugiro a gente procurar alguém que não se importe com essa “mudança” dele e fazer uma doação.
— O que? Mandar ele sair daqui de casa? Você acha que eu teria coragem? Ficou louca, Neli? Não faria essa crueldade com ele nunca!
Silêncio na sala. A beata paralisa. Cai a ficha, a máscara, o queixo...
Olha para o Artur, que abraça o Tobias. Ele dá uma piscada para Neli, que solta:
— Taí, filho de peixe, peixinho é... e agora, dona Ana?

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