Quem conta um conto...


Ana Helena Reis

Quem conta um conto

Ana Helena Reis
Dia chuvoso, o investigador aposentado Lupércio colocou sua capa e saiu em direção ao ponto de ônibus. Virou a esquina e, mesmo de longe, avistou um amontoado coberto com plástico preto. Estancou. Apertou a vista, colocou as mãos na testa e ponderou: “tá lá um corpo estendido no chão”.
Andando pela beira da calçada, mãos nos bolsos, Lupércio decidiu, então, abordar os que começaram a ladear e espiar o volume inerte no meio da calçada.
- Amigo, você estava aqui quando do ocorrido? Presenciou a cena?
- Eu não, estava só de passagem e vi o grupo se formando. Mas aquela senhora ali mora em frente, acho que deve ter visto tudo e pode te contar como foi.
- Boa tarde. A senhora é vizinha do falecido? Sabe me contar o que viu? Ah, não viu nada, só ouviu. Bem, o que ouviu?
- Eu estava na cozinha quando ouvi um tremendo estouro. Demorei para conseguir largar o que estava fazendo e ir para a janela. Então, quando olhei, o corpo já estava coberto.
O entregador do restaurante da rua de baixo, tomou a palavra:
- Eu vim fazer uma entrega aqui na rua e estava justamente retornando ao restaurante quando ouvi gritos de socorro. Mas nem parei para olhar de onde vinham, porque já estava atrasado para uma próxima encomenda.
Nesse momento, uma senhora que vinha arrastando a perna e parecia ser uma das mais antigas moradoras da rua, falou:
- Que tragédia! Estou chegando só agora, mas vi uma coisa muito estranha. Logo depois do estouro, a moradora do 81, ali do prédio vizinho, saiu na desabalada rua abaixo.
– Isso é mesmo suspeito - sussurrou o dono da venda que fica justamente do outro lado da rua. - Um pouco antes do acontecido, ela tinha vindo até aqui para pedir um facão de bom corte emprestado e comentou que o marido estava em casa, um pouco nervoso.
A senhora da perna coxa deu uma risadinha, e soltou a língua:
- Não é para menos, acho que não é nenhum segredo que ela “costura para fora”.
A vizinhança se alvoroçou. Por detrás do círculo formado em volta do plástico preto, uma voz exclamou:
- Bem que eu desconfiava... todo dia ela vai até o restaurante da rua de baixo, só pode ser com ele o caso, que pouca vergonha!
Chega o resgate. Lupércio se adianta para apresentar o laudo:
- Meus senhores, de acordo com o que apurei com os moradores, o falecido é um homem e foi atirado da janela da cozinha do 8º andar do prédio em frente. A bem dizer, trata-se de um crime passional, pois o indivíduo tinha acabado de descobrir a traição da esposa com o dono do restaurante da rua de baixo. Houve luta, gritos de socorro foram ouvidos e ela esfaqueou o pobre com o facão aqui do dono da venda. Jogou o corpo pela janela para terminar o serviço e saiu fugida do prédio, naquela direção. Acredito que antes de qualquer remoção do corpo é melhor passar o caso à polícia, para que possam ir a seu encalço o quanto antes.
Polícia chamada. O plástico preto continuava ali, abrigando o corpo inerte. Começa o interrogatório e Lupércio se adianta para recontar o ocorrido. Ouviram atentamente a história e, parados diante daquele plástico preto, fizeram a pergunta que a ninguém tinha ocorrido:
- Quem achou o corpo na calçada e colocou o plástico preto?
Entre os olhares surpresos, Lupércio coçou a cabeça.
- Não sei, não me ocorreu perguntar.
Nesse momento, irrompe na ponta da rua a vizinha do 81, ainda esbaforida. Cercada imediatamente pela multidão, ela se aproxima dos policiais.
- Me desculpem, eu realmente queria ter limpado tudo antes de correr para o restaurante, mas estava tão atordoada que não consegui. Coloquei o plástico preto e corri para contar o que aconteceu e pedir ajuda ao dono do restaurante, onde todo dia compro uma sopinha para o jantar.
E, antes que a polícia, os bombeiros e a vizinhança pudessem expressar qualquer reação, ela levantou o plástico e exclamou:
- Que desperdício!! Deixar cair um leitão tão grande como esse na hora de destrinchar... E o pior é que foi com a caçarola e tudo. Mas como diz o ditado, marido tentando ajudar na cozinha é morte anunciada. E eu bem disse que ele não ia conseguir, mesmo usando o facão do vizinho. Mas ele teimou em colocar em cima da bancada e aí o leitão escorregou, a caçarola desequilibrou e lá se foi o leitão pela janela. Ainda bem que corri até o restaurante e encomendei outro rapidinho, pois vamos ter visitas para o almoço.

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