Uma façanha no tempo


Rachel Baccarini




No momento em que ele desferia mais um golpe mortal da sua espada em um dos desalmados disfarçados em ovelha, algo inusitado aconteceu comigo e meu indômito cavaleiro. Primeiro ele sentiu um tremor por dentro de sua armadura e então uma espécie de vento imóvel nos suspendeu no ar como magia, o que nos deixou atordoados. De repente, nós estávamos em um outro lugar, muito estranho.
Não tinha nem nome para aquilo! Uma multidão de pessoas com roupas de tecidos finos e coloridos caminhavam, sem armas, e aparentemente também sem propósito ou direção. Velozes cavalos de ferro se movimentavam tão rápido como flechas de um lado para o outro, quase passando por cima daquela gente. A aldeia era enorme, e construções, mais altas que as torres de qualquer castelo, escondiam os céus. Mal podíamos ver uma nuvenzinha aqui e ali. Um barulho ensurdecedor parecia vir de todos os cantos e o ar daquele lugar, urghh... era pior que o do estábulo mais sujo! E olhem que disso entendo bem.
As pessoas nos olhavam de um jeito esquisito e com um sorriso nos lábios. Meu amo percebeu, estupefato, outras pobres criaturas humanas nas barrigas daqueles cavalos de metal, se comportando como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. “Por todos os demônios, onde viemos parar, Rocinante?”
Sim, meus senhores, me chamo Rocinante, e vou continuar a lhes contar o que veio a ser a última grande façanha do meu amo, Dom Quixote de La Mancha.
Viemos parar no meio de uma grande via e nunca havíamos visto algo igual. Não pude esconder minha agitação, e meu primeiro impulso foi sair em disparada. Meu cavaleiro tentava me controlar e ensaiava movimentos grandiosos com sua lança como se preparando para qualquer possível duelo. “Mas contra qual desses pobres coitados fomos destinados a combater, meu amigo?”. Por mais que aquele ambiente todo nos fosse bastante estranho, não me parecia que ninguém ali se atreveria a atacar Dom Quixote, assim sem etiqueta nem hora marcada. “Por Deus, essa horda de selvagens deve ter um algum código de honra!”
Percebeis que Dom Quixote gostava de conversar comigo, porque se acalmava. E, caros senhores, sem falsas modéstias, apesar de muitos dizerem que pareço mais um pangaré, minha inteligência é acima da média para um rocim e meu sexto sentido sempre nos guiou pelos caminhos de trevas. Por isto, logo compreendi que estávamos em outro momento no tempo. Vendo esses dois mundos que se entrelaçaram, os senhores podem cogitar como será que nossa dupla, eu e o cavaleiro andante com armaduras da cabeça aos pés, éramos vistos pela horda de selvagens. Ora, eles tinham olhos fugidios, mas não deixavam de nos observar com curiosidade. Afinal, um cavaleiro empunhando uma lança e montado neste garboso animal que vos fala, não era uma cena comum naquele século.
Mas as atenções não se demoravam muito sobre nós. Parece que aquele povo não podia se deixar distrair, não conversavam uns com os outros e não tiravam os olhos de umas misteriosas caixinhas pretas mesmo enquanto comiam ou andavam. Todos eles tinham pelo menos uma nas mãos. De dentro das caixinhas saiam palavras que não faziam sentido e a elas todos obedeciam. “Não sei que lugar é este, mas sei que as pessoas aqui são escravas das pequenas caixas!”, podem ver que não precisou de muito tempo para meu amo, sempre em busca de aventuras, chegar a essa conclusão, prenunciando mais uma das suas grandes façanhas pela frente, a derrubada da tirania das caixas pretas e o fim da escravidão para os cidadãos daquele condado.
Com a mesma velocidade com que o engenhoso fidalgo identificou centenas de súditos a serem salvos, ele soltou a espora nos meus maltratados lombos e partiu para o ataque aos cruéis opressores. Para Dom Quixote, não interessava mais onde estávamos, só o que via pela frente era a iminente batalha contra um exército de poderosos inimigos, de onde saiam vozes perturbadoras, e que precisavam ser abatidos.
A partir daí, tudo se resumiu a um salve-se quem puder. Voaram estocadas de lança para todos os lados, caixinhas pretas foram ao chão, pessoas desesperadas se jogavam atrás delas, eu relinchava e distribuía coices tentando ajudar meu amo, enquanto este desferia golpes certeiros, destruindo dezenas das caixinhas. Eu conhecia muito bem aqueles seus olhos fundos e vidrados que brilhavam ao vislumbrar as glórias da batalha.
Mas, para não nos desviarmos da verdade nem um til, é preciso dizer que passados alguns minutos, esse pobre cavaleiro começou a sentir o peso da idade e do cansaço. Me perguntei se ele estava sentindo falta do seu fiel escudeiro. Depois de tanta confusão ele notou que as caixas pretas se multiplicavam juntamente com as pessoas, e essas já eram muitas a fazer plateia para tão extraordinário combate.
Meus senhores, aquela era uma verdadeira encruzilhada onde nos encontrávamos. Dom Quixote lutava bravamente desferindo bordoadas cada vez mais fracas e eu o sustentava como podia, mas logo percebemos que estávamos fadados a uma derrota vergonhosa, pois crescia o número de indignados cidadãos procurando defender suas caixas a qualquer preço. De indignados eles tornaram-se furiosos com nossa insistência e resolveram partir para o ataque a este que vos fala e ao nosso cavaleiro andante, que a essa altura mal conseguia permanecer no meu lombo. Nem ele, nem eu, entendíamos por que essa gente amava tanto seus opressores.
De repente, chegaram as pessoas armadas e a correria aumentou. Meu amo não percebeu, eram armas pequenas e só depois eu vim a saber como eram mortais. Ele continuou suas estocadas com a lança tentando acertar as caixinhas pretas, e sem se dar conta foi atingido no peito pelo fogo do inimigo. Senti seu peso sendo aliviado do meu lombo, escutei o baque do seu corpo no chão e a gritaria da horda de selvagens.
Uma das mulheres da plateia se aproximou do cavaleiro abatido e se ajoelhou próximo a ele. Mas para meu amo aquela era ... “Dulcinéia, Dulcinéia, senhora dos meus sonhos, mas talvez não tenha sido um sonho, pois estás ao meu lado agora, e sua presença enche a morte de doçura.” Ele sussurrou quase inaudível. Com certeza, a mulher não entendeu as últimas palavras do moribundo, que recostou a cabeça no seu colo e, sorrindo, despediu-se dessa vida em busca de novos embates.
Meus senhores, dessa forma se findou o grande Dom Quixote de La Mancha, no campo de batalha lutando contra tiranos, opressores e homens violentos, não numa cama como dizem as más línguas. Nunca o cavaleiro da triste figura pareceu tão triste. Seu corpo magro e sem vida estava jogado num chão sem terra para apará-lo ou para enxugar o sangue que lhe escorria do peito. Longe do seu tempo e lugar, fora vencido pelos tiranos do futuro, o mais impiedoso de nossos adversários.
Eu me sentia desolado e se fosse humano teria chorado. Além de estar perdendo meu amo, eu temia pelo meu destino nesse mundo. Pela primeira vez duvidei de tudo que durante anos escutei da sua boca e pensei se este seria o fim daqueles que ousavam perseguir sonhos impossíveis, vencer batalhas imbatíveis e alcançar estrelas inalcançáveis.

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Rachel Baccarini

E-mail: rachelbaccarini@hotmail.com

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