Jonas e o espelho


Rachel Baccarini

Jonas

Quando Jonas estacionou o carro na porta da leiteria, percebeu que apesar da hora, a rua ainda estava movimentada. Alguns casais de namorados passeavam de mãos dadas e guardas noturnos faziam suas rondas habituais. Olhando para os lados, cogitou se deveria levar seu plano adiante. Mas, depois de alguns necessários minutos, suficientes para deixar alguns bilhetes no porta luvas para os amigos mais próximos, pegou a grande bolsa cor de rosa atrás do banco do motorista e saiu. Deixou a chave do carro no painel, bateu a porta e caminhou para a loja de brinquedos que ficava na esquina com o beco, ao lado da leiteria. É bem verdade que atraiu olhares curiosos no caminho, afinal, ele estava vestindo um pijama azul marinho com bolinhas vermelhas, de calças e mangas compridas e uma pantufa branca. Seus cabelos e barba compridos e desgrenhados, e um olhar sorridente fixo na sua bolsa cor de rosa, completavam o visual. Alguns poderiam jurar que ele tinha acabado de sair do manicômio.
Bastou alguns passos para que chegasse na porta da loja de brinquedos artesanais, que estava obviamente fechada aquela hora da noite. Por fora, ela parecia uma dessas lojas antigas e apertadas, com uma porta de madeira maciça e duas pequenas janelas laterais com cortinas de renda. Em cima da porta, um grande letreiro colorido dizia: “A NAVE- venha realizar seus sonhos”. Jonas parou encostado na porta por alguns segundos e quando percebeu que não era observado girou lentamente a maçaneta em sentido horário. A porta entreabriu-se e por ali entrou nosso estranho personagem.
Mas vamos voltar algum tempo atrás, por que nosso amigo foi parar ali aquela noite?
A vida de Jonas era como a da maioria das pessoas naquela cidade. Era uma cidade estranha, no meio do nada, com pessoas estranhas que gostavam de vigiar seus vizinhos e tinham sempre um caderno onde anotavam tudo que viam de diferente. Talvez porque não havia espelhos na cidade, uns estavam sempre olhando para os outros, mas não eram capazes de olhar para si mesmos. Por isso, os cidadãos daquela cidade faziam o possível para não chamar a atenção. Alguns estudos haviam sido feitos há muitos anos atrás, na época do avô de Jonas, para tentar explicar por que todos os espelhos que chegavam na cidade espatifavam-se em mil pedaços, misteriosamente. Nenhum deles chegou a uma conclusão plausível e assim, aqueles que faziam questão de ver seus rostos pela manhã haviam se mudado dali. Ficaram os que não se importavam, aqueles que preferiam não ver, e eram muitos!
Mas Jonas nasceu ali e estava acostumado à rotina da cidade e a uma vida sem espelhos. Ele agora tinha mais de 30 anos mas nunca pensara em se casar ou ter filhos e se considerava feliz, apesar dos seus dias serem monótonos como um disco de vinil arranhado. Ele mesmo fazia suas refeições, lavava suas roupas e limpava sua casa. Durante a semana, procurava se concentrar no seu trabalho no banco. Tinha saúde, seu salário estava na conta ao final de todos os meses e seu pequeno apartamento era confortável. Alguns poucos amigos completavam o quadro da vida de alguém que parecia satisfeito consigo mesmo. Só uma coisa incomodava nosso amigo de vez em quando. Ele nunca havia visto seu rosto.
Fora alguns pesadelos ocasionais nos quais ele sempre se perdia no meio de uma multidão sem identidade, tudo ia bem na vida de Jonas. Até que uma noite, ele já estava quase dormindo quando a campainha tocou. “Quem será a essa hora?”
Levantou sonolento e abriu a porta. No chão estava uma caixa grande de papelão com o timbre dos correios, mas sem o remetente. De princípio, ele achou que era algum engano, mas logo viu seu nome na etiqueta - Sr. Jonas M. Gregório.
Relutante, levou a caixa para dentro do apartamento, e não abriu de imediato. Perdeu o sono, pensou muito... Como se soubesse que ali poderia haver algo terrível. Até que resolveu abrir a caixa que estava completamente selada.
Cortou toda a fita adesiva e retirou de dentro uma bolsa cor de rosa meio brilhante. Lentamente abriu o zíper e espiou.
Soltou um grito abafado se afastando da caixa como se fosse uma mola solta. Se jogou no sofá da sala e finalmente foi parar no chão. “Meu Deus, que horror! Era... era um olho aquilo? Sim, um olho arregalado, assustado! “
Depois de se acalmar um pouco, Jonas voltou a pegar a bolsa e tirou dela um bilhete escrito a mão e um pequenino espelho, intacto, para sua surpresa. Nele via refletido seu próprio olho. Era a primeira vez que olhava para qualquer parte do seu rosto. Sentiu uma emoção que não conseguia entender. Jonas estava maravilhado e ao mesmo tempo com medo. Abriu o bilhete que dizia: “Já é hora de você ver o mundo e se conhecer. Dirija-se agora para A NAVE”. O endereço estava em vermelho no final do bilhete, sem assinatura.
Dessa forma, nosso herói foi parar na tal loja, não antes de andar por uma hora pelo seu apartamento, cheio de dúvidas, com medo do que encontraria na NAVE. Mas ele, àquela altura, estava decidido. Ao abrir a bolsa, havia ultrapassado o ponto de onde poderia retornar e soube que sua vida mudaria para sempre. Jonas sentiu um desejo profundo e desconhecido até aquele momento. Precisava ver a si mesmo por inteiro, queria um espelho maior e queria sair daquela cidade onde as pessoas nunca se veem. Colocou de volta o pequeno espelho na bolsa cor de rosa, e saiu para o endereço indicado, pronto para o que viesse pela frente. Estava tão entusiasmado com a possibilidade de novas descobertas que não notou que ainda estava de pijamas.
Quando virou a maçaneta da porta viu uma luz muito forte que vinha de dentro. A loja era mesmo pequena e não havia nenhuma pessoa ali, só muitas estantes nas paredes cheias de brinquedos de madeira de todos os tipos: carrinhos, animais, casinhas... No centro da loja um espaço vazio, e uma luz branca extremamente forte iluminava todo o ambiente, vinda da parede no fundo da sala. Nessa parede havia uma cortina marrom que se estendia do teto até o piso, com mais de um metro de largura. Mais do que o resto do ambiente, era essa cortina que chamava atenção de Jonas porque era onde a luz focava.
Jonas foi até ela e a abriu de supetão.
- Uau! Como você veio parar aqui?
Um homem enorme, de cabelos e barba compridos, vestindo um pijama azul de bolinhas vermelhas estava ali, na sua frente, com uma cara assustada!
- Quem é você?
Demorou alguns segundos até que Jonas percebeu que via sua própria imagem refletida num enorme espelho na parede, uma imagem cristalina e muito real. Aos poucos ele foi entendendo, abismado, e seu corpo foi se entregando ao chão. Sentou-se com a bolsa cor de rosa ao lado e ficou olhando para essa pessoa, não muito agradável, desorganizada, deprimida e sem esperança. Não gostou do que viu.
Mesmo assim ele resolveu observa-la melhor. Chegou bem próximo ao espelho e fazia movimentos com as mãos que eram acompanhadas pela figura do outro lado. Movimentava a cabeça, abria e fechava a boca, balançava seus cabelos despenteados. Observou as rugas na sua testa, seu olhar triste e sem objetivo e notou uma marca na mandíbula esquerda. “Você não é feliz. Parece cansado e triste, mais velho do que eu sou”. Pensou na sua vida, no vazio que sempre tentou disfarçar. Na frustração das amizades superficiais, do trabalho mecânico e na falta de propósito. Faltava alguma coisa, sempre faltou. “Faltou você, cara! Você que eu não conheço e com quem eu nunca conversei.”
Desolado, Jonas encostou o rosto no espelho. Alguns segundos depois, sentiu o espelho vibrar em contato com sua testa. Ele ficou ali paralisado enquanto a vibração aumentava causando uma sensação de profundo bem-estar. Jonas sorriu. O espelho o puxava e Jonas não resistia, simplesmente se deixava levar. Aos poucos, nosso amigo foi sendo absorvido, primeiro a cabeça, os ombros, braços, tronco e por fim as pernas. Jonas sumiu dentro do espelho. A bolsa ficou jogada no chão e a loja de brinquedo ficou às escuras de repente. Silêncio, tudo era silêncio.
Na manhã seguinte, bem cedo, o rapaz que trabalhava na loja, ao chegar notou que havia alguma coisa diferente, uma bolsa cor de rosa no chão e uma grande cortina marrom na parede dos fundos. “Essa bolsa não estava aqui ontem. O que será que tem dentro dela?” enquanto pensava se encaminhou para a bolsa e ao abri-la soltou um grito assustado! Dentro da bolsa havia um grande olho que o observava e um bilhete sem assinatura.







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Rachel Baccarini

E-mail: rachelbaccarini@hotmail.com

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