Despedida


Ana Helena Reis

Despedida
Ana Helena Reis

O local era pequeno e estava muito abafado. O cheiro das flores, já um pouco murchas, se misturava com o das águas de colônia de diferentes fragrâncias. Velas altas ladeavam o caixão, onde se via uma mulher em torno dos cinquenta anos.

Ao lado do caixão, os filhos de Lianara recebiam longos abraços e palavras de consolo.
A cada vizinha, cada amiga que se aproximava, um novo causo era contado entre lágrimas. Do baile funk à festa do batizado da afilhada, tudo girava em torno das lembranças de como tudo começou e do quanto a defunta tinha sido fundamental para que elas brilhassem, tivessem o seu “dia de Cinderela”.

Ela saltou do ônibus e escolheu o percurso mais longo para casa – precisava organizar as ideias e destravar o nó da garganta, antes de encarar aquelas quatro bocas à sua espera. Nas mãos, o último salário e uma caixa que ainda exalava o perfume do closed da D. Carlota. Decidiu abrir a caixa antes de chegar em casa: “ quem sabe, com presente da patroa a situação se resolvesse?”

Chamou as amigas. Mostrou o que tinha. Daí para frente todos os dias tirava da caixa seu bem mais precioso. Nunca deixou de cuidar dele com carinho e, secretamente, agradecer por estar ali, a seus pés, sem um lamento ou desdém.

Aos poucos o negócio cresceu. Outros foram chegando, trazendo a clientela e tornando o ChiqueLoc da Lianara um sucesso. Nunca mereceram, porém, o mesmo carinho e reconhecimento. Nunca chegaram a ocupar o espaço que ele ocupava. Mesmo depois de enfrentar todo o estica-encolhe a que se viu obrigado, a carregar tanto peso que quase envergou de vez. A percorrer vielas e entalar em becos, tomar chuva, ser jogado escada abaixo pelas madrugadas, nunca perdeu sua majestade e o lugar de honra no ChiqueLoc.

Um espreme-espreme indica que é chegado o momento de fechar o caixão. Alguém, avisado tardiamente, tenta se aproximar para a despedida – “...Afinal foram tantos anos de trabalho na casa, ela merece esse esforço”.

O corpo estava coberto por um tecido branco rendado, como de praxe. O olhar de D. Carlota repousa nos pés inchados, espremidos em um par de sapatos vermelhos de salto alto que mais pareciam asas rubras prontas a bater voo. Em meio ao silêncio dos que se aproximaram para o último beijo ela exclama:
“Nossa! Mas não é que vocês colocaram aquele sapato vermelho que eu dei? Mas por que vão se desfazer dele? Até que ainda está bonito, elegante, poderia calçar outras de vocês.”

Há quem jure de pés juntos que ouviu o sapato vermelho responder:
“Vou com ela, minha cara...você não entenderia”

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