Levitar


Ana Helena Reis

LLevitar

Ana Helena Reis
Sentada em sua cadeira de balanço, olhos fechados, ela vai se deixando levar. Imagens coloridas compõem um cenário, daqueles que a gente vê nos caleidoscópios da nossa infância.
Percebe-se em uma sala familiar, onde se dá um mutirão de arrumação. Móveis afastados, bandeirinhas coloridas, balões cheios de ar, abrindo espaço para a dança, a corrida, o cantar. Pirulitos gigantes em arco-íris, brigadeiros enrolados cuidadosamente de véspera e uma fileira de gelatinas tricolores enfeitam a mesa, coberta por uma toalha de papel crepon.
Lentamente se apruma na cadeira e sente aquele gosto de antecipação de festa que a fazia correr sem parada de um lado para o outro, à espera.
Pelas pálpebras semiabertas vão, em espiral, aparecendo rostos que a transportam no tempo e no espaço.
Uma menininha saltitante, atravessa o salão com tal leveza que ninguém nota o que carrega nas costas. Por onde andou essa menina? Quantas mochilas foram pesadas demais e ficaram pelo caminho?
Com estardalhaço, aquela que foi sua grande companheira irrompe pela sala e se estatela no chão. Seus lábios ensaiam aquele sorriso matreiro com que contornava as situações, transformando a “desgraça” em motivo para uma boa piada. Se dá conta de quão pouco tem estado com ela nos últimos anos. Será que está se tornando uma velha ranzinza?
Ao longe, se equilibrando no salto alto da mãe, entram aos tropeços duas figuras que se perderam no tempo, castigadas pelos tropeços da vida. O rosto se transfigura, dá uma balançadinha na cadeira e se pega com vontade de saltar dali e começar a rodopiar novamente com sapatilhas douradas.
Vozes ao redor indicam que a festa vai começar. Em meio ao torpor do cochilo, resgata e acaricia cada uma das luzes que habitaram sua alma e as enlaça antes que o sonho se esvaneça.
Abre os olhos e se vê rodeada dos netos e bisnetos que chegaram para festejar. O burburinho começa, a correria das crianças aumenta. A mesa enfeitada, os balões, as guloseimas, tudo como dantes.
Se reclina na cadeira, junta os pés para acompanhar o ritmo da música e comemora. Por que hoje, hoje é o Dia dessa Criança interior que a mantém viva e que a faz levitar até a festa acabar.

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