Fumaça


Ana Helena Reis

Fumaça
Ana Helena Reis

A casa tinha uma sala ampla, onde ficava a lareira que, mesmo enfumaçada, aquecia o ambiente e convidava a família a juntar. Os pequenos se jogavam nos almofadões, os casais dividiam as poltronas, e todos cabiam ali ao seu redor. A avó colocava os pés gelados praticamente encostados nas brasas dos nós de pinho, que exalavam um perfume amadeirado e inconfundível. Ali ficava contemplando o fogo, enquanto travessas de pipoca estouradas na panela eram disputadas por crianças e adultos. Essa alquimia temperava o sabor dos jogos de cartas à noite, dos planos de passeios para o dia seguinte, enquanto embalava a soneca de D. Dina.

Ainda hoje sente nos olhos o ardor de fumaça da lareira. O fog tomava conta da sala inteira, e as roupas com cheiro defumado acompanhavam a família durante toda a temporada. Sorri ao lembrar da avó que, alheia a tudo, de vez em quando soltava baforadas daquela fumaça perfumada em que estava envolta e perguntava: “Fumaça? Que fumaça?”

Na porta de entrada, galochas empoeiradas das crianças se sucederam por duas gerações. Depois de despidas, exibiam meias encardidas, que enfeitavam o varal atrás da casa e viravam bandeirolas durante a madrugada.
Na esplanada em frente à casa, os adultos sentavam a conversar e observar a criançada, aproveitando o sol da tarde.

Foi em uma tarde dessas que ele apareceu.
– Boa tarde, vim consertar a lareira, a pedido de D. Dina.
Ela mediu o rapaz, fixou em seus olhos e perguntou:
- Como D.Dina entrou em contato, visto que não sai de casa e não usa o telefone já há tempos?
– Mandou um recado, disse que viesse hoje sem falta, que tinha que ser hoje – respondeu o limpador de chaminés.
Depois de consultar os outros, achou por bem deixar o rapaz fazer o serviço – Vai que ele consegue acabar com a fumaça?- pensou.

Telhado acima, lá se foi o limpador de chaminés, sob os olhares curiosos das crianças e uma certa incredulidade dos adultos – afinal há tantos anos lutavam contra o entupimento da lareira...

Aos poucos foram sendo atirados de lá de cima chumaços de folhas secas grudadas, que se instalaram nas paredes da chaminé ano após ano. A cada investida, outra camada mais profunda, mais carbonizada, dificultando a passagem da fumaça, impedindo o fluxo natural das chamas que, uma vez cumprida sua missão, deveriam se desprender em direção à vastidão do céu.

Era quase noite quando o limpador de chaminés se despediu, dando por concluído o trabalho.
Foi preparar um jantar especial e os aperitivos, pois essa prometia ser a primeira noite sem fumaça, algo a se comemorar. As crianças tomaram um banho caprichado, os adultos escolheram uma roupa que ainda não tinha sido defumada, e D. Dina apareceu vestida com seu melhor traje, cabelo arrumado, uma leve maquiagem e um sorriso nos lábios como há muito não se via.

Tudo pronto, momento de acender a lareira. A tarefa coube ao neto mais velho, que solenemente jogou o fósforo na pilha de lenha, gravetos e nós de pinho cuidadosamente arrumados, de forma a produzir uma pequena pirâmide por onde o ar poderia circular, ajudando a combustão.

A família reunida, olhos fixos no crepitar do fogo, as labaredas subindo e a chaminé sugando como nunca havia feito. Palmas, gritos de alegria, abraços e vivas ecoaram pela sala.
Correu para agradecer à avó, sentada solenemente com os pés próximos ao fogo, como de costume.

Ela, porém, havia se despedido junto com a fumaça.

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