Pandora


Ana Helena Reis

Pandora
Ana Helena Reis

Passo todo dia em frente e procuro desviar o olhar daquelas caixas de papelão. Caixas antigas que, por terem um tamanho bom, guardei para reutilizar em algum momento. Um certo, dia resolvi organizar as fotos que ficavam naqueles albunzinhos que as Fotóticas da vida ofereciam junto com os filmes revelados, da época em que se revelava fotografia e colocava em álbuns. Tirei tudo e guardei nessas caixas para ir, aos poucos, organizando.
O tempo passou, não fiz isso quando deveria ter feito e, agora, essa se tornou uma Caixa de Pandora. Lá estão registrados anos e anos da minha vida, que de certa forma, ao serem guardados nessa caixa, parece que ficaram congelados,
Abri-la hoje é revisitar os mundos por onde andei, pessoas que deixaram, nesse papel fotográfico já um pouco desbotado, os marcos da vida. E as fotos ficam lá, marcando presença, me desafiando, na espreita, esperando a hora de me assombrar.
Já repararam como fotos em papel impactam diferente na gente? Quando parei para escrever, me dei conta de que quando tudo passou a ser digital, minha memória também digitalizou, passou a ocupar outro espaço, menos emocional, longínquo, o espaço virtual.
Nesse plano mais distante estão os álbuns mais recentes, que contém momentos parecidos e com as mesmas pessoas dos que estão em papel, mas posso revê-los sem sentir que estou ali. As fotos parecem não fazer parte de mim e sim de uma plataforma - elas habitam fora de mim, numa nuvem. Esse distanciamento me possibilita facilmente deletar, corrigir, cortar, criar outros contextos para os momentos ali retratados.
Se algo desagrada, ou traz uma lembrança indesejada, com um click está tudo resolvido e nem me lembro mais de que um dia captei, registrei esse momento. Já as fotos em papel não. Eliminá-las exige rasgar, queimar, colocar no lixo, sei lá...um processo cirúrgico dolorido.
Ao se desfazer de flagrantes do passado que hoje não são mais significativos, da fisionomia de pessoas que não deixaram marcas - hoje são praticamente estranhos – sinto como que essas fotos tivessem vida própria, não me pertencessem e sim à minha história. E não há como apagar essa história.
A digitalização, no fundo, desumanizou esses relatos de vida, criou uma distância confortável entre nós e aquilo que está na tela, para que pudéssemos ir ceifando, sem dó nem piedade, tudo aquilo que incomoda, que não faz mais sentido e, assim, compor o álbum com a história que gostaríamos de contar.
Mas as fotos em papel criam vida... e elas estão ali, me espreitando dentro daquela caixa, e me dizendo: venha, não há presente sem passado e aqui é seu ponto de partida.

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