Carta fora do baralho


Ana Helena Reis

A primeira vez que me chamaram de senhora foi um choque... e lá se vão tantos anos... mas sabe? nunca me acostumei com o Sra, porque na minha cabeça ainda sou aquela menina que sorri para o espelho e fica satisfeita com o resultado, porque sorrindo se acha mais bonita e confiante.

Mas aos poucos fui percebendo que o chamar de senhora era o de menos – outros sinais do envelhecimento foram se revelando muito mais sutis e devastadores.

Estão imaginando que me refiro às rugas, ao cabelo branco, à flacidez da pele, ás dobras do pescoço, né? Nada disso... , não é isso que me incomoda... incomoda me sentir uma carta fora do baralho... sabe aquele Coringão que no jogo de tranca fica de fora? Pois é.. é assim que me senti.

Antes a gente jogava buraco, e eu como o Coringão, me sentia aquela carta fundamental para fechar a sequencia, aquela que quando entrava fazia a diferença para os parceiros. Me sentia aquela carta tão esperada, que tinha lugar tanto entre os números pequenos como entre os valetes, reis e rainhas que lideravam a mesa.

Me sentia admirada quando entrava num jogo, não pela beleza, pois nunca fui daquelas cartas lindas como a rainha de ouros, para quem todo mundo olha.

Brilhava pela sedução que a personalidade de um joker provocava, sempre à vontade tanto entre as cartas pretas como entre as vermelhas, a cada lance imprimindo alegria e descontração às acirradas disputas.

O tempo passou, os jogos mudaram. Não há mais espaço para o Coringão nas novas regras.

Mas, aos poucos, fui descobrindo que ele continua fazendo parte do baralho e quem dá as cartas não o joga fora, pelo contrário - respeitosamente o coloca ao lado, de onde ele pode observar, ouvir, aprender e torcer pelos que hoje estão no jogo.

É esse, hoje, o meu espaço. Ele incomoda cada vez menos, á medida em que percebo que a disputa de que eu participava ficou no passado, mas eu ainda faço parte do baralho.

E assim, aceito o avanço da idade com mais humildade e com o bom humor de um Joker.

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